Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“Aqui, todo mundo tem medo do Sarney”

A jornalista Alcinéa Cavalcante é alvo de mais de 20 ações movidas pelo senador reeleito do Amapá, José Sarney. Por conta disso, foi condenada pelo Tribunal Regional Eleitoral a retirar de seu blog o conteúdo considerado ofensivo pelo político maranhense e a pagar mais de R$ 500 mil em multas.


Alcinéa foi fundadora do Sindicato de Jornalistas do Amapá (Sinjor-AP) e hoje é presidente da Comissão de Ética do órgão. Tem 50 anos e mora no Amapá desde que nasceu. Passou pela Gazeta Mercantil, pelo jornal paraense O Liberal e pelo já extinto O Estado do Amapá. Hoje, trabalha para a Agência Estado e publica um blog na internet, estopim para os processos. Além disso, já publicou poesia e está escrevendo um livro sobre política no Amapá.


Na entrevista, a jornalista relata os problemas que atingem a mídia amapaense e detalha sua briga na Justiça com o poderoso José Sarney.


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Quantas são as ações movidas por Sarney contra a senhora e no que elas consistem?


Alcinéia Cavalcante – São mais de 20, por volta de 23. É inacreditável como tudo começou. Em agosto, eu postei uma brincadeira no meu blog. Por estarmos na época de eleições, disse que muitos candidatos deveriam pregar um adesivo com a frase “O carro que mais combina comigo é o camburão da polícia” no vidro traseiro de seus carros. No campo dos comentários, um dos internautas disse que a frase combinava com o Sarney, e citou uma piada já antiga por aqui, a de que o senador tem uma fazenda de burros no Amapá. Desde a década de 1990 que pessoas de fora do estado dizem que somos burros porque votamos em Sarney.


Por conta do comentário, que estava devidamente assinado pelo leitor do blog, o senador entrou com uma ação contra mim. Sofro outro processo por ter publicado uma caricatura feita por um cidadão de Macapá, que contém a frase “Xô Sarney”. Só eu fui alvo da ação, mas o desenho foi publicado em mais de 50 mil blogs. Outro processo foi decorrente de uma reprodução, também no meu blog, de duas capas da Veja da época em que ele era presidente. Uma era sobre a fraude na ferrovia Norte-Sul, outra fazia referência a uma matéria que o acusava de fazer festas com o dinheiro público em Paris. Fui processada por ter reproduzido um material que já circulava pela mídia.


E qual foi o resultado dos processos? A senhora foi condenada em algum deles?


A. C. – Não ganhei nenhum, mas também não paguei nenhuma multa porque estou recorrendo. O pagamento das multas, que totalizam R$ 500 mil, não é imediato, como teve de ser a retirada do material considerado ofensivo do ar. Até eu recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para derrubar a liminar era meio complicado, então cumpri tudo. Além de ter sido obrigada, pelo TRE, a tirar todo o material supostamente ofensivo do ar, tive de publicar o direito de resposta. Mas para você ter uma idéia, em nenhum momento o Sarney faz referência ao conteúdo das postagens. Ele aproveita o espaço para se autopromover, para dizer que foi presidente da República, que é membro da Academia Brasileira de Letras…


E o que o TRE alegou para retirar os textos e as imagens do ar?


A. C. – A legislação eleitoral tem uma série de restrições para a publicação de conteúdos em jornais, rádios, emissoras de TV e páginas de empresa de comunicação na internet. Mas blog é uma coisa pessoal, não é uma página de uma empresa. Eu respondo como pessoa física, não como pessoa jurídica. Fato curioso é que, num primeiro momento, o TRE julgou improcedente a ação movida pelo Sarney, alegando que blog é publicação pessoal e que, portanto, seu conteúdo não podia ser julgado pela mesma lei. Estranhamente, uma semana depois, o TRE mudou seu entendimento e me condenou.


Quais são os indícios de que o TRE-AP atua a favor do Sarney?


A. C. – Além de todas essas ações movidas contra mim por motivo bobo, outros jornalistas foram processados por motivos semelhantes. São eles Humberto Moreira e Domiciano Gomes, que apresentam um programa de rádio chamado Revista Matinal, e Corrêa Neto, que assina um blog. A semanal Folha do Amapá também está sendo processada. Não sei exatamente qual é o conteúdo do material veiculado por eles, mas a alegação é a mesma: propaganda desfavorável e ofensa. Nenhum outro jornalista ou veículo foi processado pelo senador fora do estado.


Isso acontece porque aqui no Amapá todo mundo tem medo do Sarney. Quem não tem medo tem rabo preso. A mídia é governista, apóia tanto o Sarney como o Waldez [Waldez Góes (PDT), governador reeleito]. Vou dar um exemplo: o candidato que foi derrotado por Waldez, João Capiberibe (PSB), foi alvo de matéria desfavorável pela TV Record, transmitida em rede nacional. A grande maioria dos jornais daqui repercutiu a matéria contra ele. O Ministério Público Estadual divulgou que os vídeos que incriminavam Capiberibe eram falsos, mas o TRE não concedeu direito de resposta ao candidato do PSB. O tribunal alegou que a imprensa local apenas reproduziu o que tinha saído na mídia nacional. Nesse mesmo dia, o TRE julgou ação do Sarney contra mim, em que ele pedia a retirada das capas da Veja do ar e reivindicava direito de resposta.


Pode-se dizer então que a mídia ajudou nas reeleições de Waldez e de Sarney?


A. C. – Sim. A imprensa é completamente atrelada ao governo do estado. Aqui, o empresariado é muito fraco, então os veículos de comunicação sobrevivem de verbas públicas. Nós temos três jornais diários. Os três são governistas. A maioria das emissoras de rádio também é pró-governo. Entre as emissoras de televisão, a única que consegue manter uma certa isenção é a TV Amapá, afiliada da Globo. Apesar de o governo ser o maior anunciante.


A senhora foi ameaçada? Teve medo de sofrer represálias?


A. C. – Eu tive medo, sim. Eu evitava sair de casa, ou pelo menos não saia com o meu carro. Recebi alguns avisos. Mas quando alguém me fala “Pára com isso, se não vai se dar mal”, eu não dou muita confiança. Quem quiser fazer algo contra mim não vai avisar. Não liguei muito para os recados, mas tomei certas precauções.


Ao saber que estava sendo processada, a senhora acionou a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). Qual foi o procedimento que o órgão tomou?


A. C. – Eu mandei um dossiê à Fenaj, relatando o caso. Então, o órgão protocolou ofício ao ministro Marco Aurélio Mello, pedindo que o TSE tomasse providências. Então, o TSE cobrou explicações do TRE-AP. Isso se deu nos últimos dias antes das eleições, na última semana de setembro. A partir de então, não tive conhecimento de mais nenhuma ação contra mim. Entretanto, na seção do dia 4/10, o presidente do TRE, Honildo Amaral de Mello Castro, informou aos demais membros que havia recebido notificação do TSE e que responderia dizendo que eu estava atuando como militante, e não como jornalista, o que não é verdade.


Então a senhora não tem nenhuma ligação com o partido do Capiberibe?


A. C. – Não tenho. Quem tem ligação com o partido é minha irmã, Alcilene Cavalcante, e o TRE sabe disso. Ela faz parte da direção do partido e esse é um fato público e notório. Eu não sou filiada a nenhum partido, a nenhum candidato. Inclusive, não costumo declarar meu voto. O pessoal do Capiberibe já encrencou comigo, achando que eu era Waldez. O pessoal do Waldez acha que eu sou Capiberibe. Aqui é assim, quando você faz uma matéria desfavorável a algum candidato, ele já acha que o jornalista é aliado ao político adversário dele. Eu me divirto! Uns acham que eu sou Capi, uns acham que eu sou Waldez, outros acham que eu sou PSTU, esse tipo de coisa.


Por que o UOL tirou o seu blog do ar?


A. C. – O UOL retirou o meu blog do ar por medo, exatamente quando o Sarney começou a entrar com as ações contra mim. Minha irmã tinha um blog no UOL também. Como eu, ela publicou o “Xô Sarney”, e responde a processo por isso. O TRE determinou que ela retirasse esse conteúdo do ar, e ela tirou. Logo em seguida, o blog deixou de existir, o UOL simplesmente tirou o blog do ar no mesmo dia, dizendo que foi por recomendação de seu departamento jurídico. Cobrada de mais explicações, a empresa assumiu que o departamento considerava o Sarney um homem muito poderoso, e achou melhor acabar com a página. Pouco depois, foi a minha que eles extinguiram. Não entrei em contato pedindo explicações, pois eu já sabia o que tinha acontecido.


Além da Fenaj, que outros órgãos de comunicação se pronunciaram a respeito das ações movidas pelo Sarney?


A. C. – A Associação Brasileira de Imprensa disse que tomaria providências, mas ainda não se pronunciou. A Rede de Escritoras Brasileiras mandou nota de solidariedade que eu publiquei no meu blog. Preferi não solicitar ação do Sinjor-AP, embora eu seja fundadora do órgão e presidente da Comissão de Ética, pois, como já falei, os veículos do estado vivem de verba pública. O jornalista é obrigado a cumprir as determinações do jornal para o qual trabalha. Nenhum deles pode fazer comentários desfavoráveis ao governo, mesmo em mesa de bar, porque, se o patrão descobre, ele está na rua. É uma questão de sobrevivência. A empresa de comunicação não tem despesa com pessoal, só com papel, energia. Lá no sindicato, a gente não consegue fazer nada por conta disso. Assim, optei pela Fenaj, até porque ela tem mais peso.


Como a senhora avalia a atuação do Sarney como senador do Amapá?


A. C. – O Sarney, em 16 anos de mandato, apresentou 23 projetos. Desses 23, apenas cinco foram para o Amapá. Quando ele foi eleito pela primeira vez, esperava que o estado realmente crescesse, que fosse se desenvolver, afinal tínhamos como senador um ex-presidente da República, alguém que tinha poder, que tinha força. Embora não tenha votado nele, achava que o Sarney traria coisas boas ao Amapá, que tinha acabado de se transformar em estado. Mas acabei tendo uma decepção. Ele não trouxe quase nada para cá. Distribuiu emissoras de rádio, mas todas tinham de ser suas aliadas. Então a sociedade acabou sendo prejudicada, pois foi privada de seu direito à informação. Em seu próximo mandato, Sarney continuará fazendo o que fez nos últimos anos: nada. Um dia ele aparece com um projeto, todo mundo faz festa, e ele some de novo. A vinda de Sarney para o estado é manchete de jornal. Se ele viesse com freqüência aqui, isso não aconteceria. O senador não tem contato com os problemas da região, não tem contato com o povo. Nós, como Associação Amapaense de Escritores, convidamos o Sarney para fazer parte de nossa associação. Ele, como imortal da ABL, daria um peso à associação, mas ele não aceitou o convite.


Por que os amapaenses continuam votando em Sarney?


A. C. – Porque eles não têm a informação. Como a imprensa é aliada dele, não passa a versão real das coisas. O que se diz é que o Sarney trouxe energia ao Amapá. Mentira. Nós tivemos aqui no estado, por volta de 1991, um racionamento de energia. O Sarney fez um lobby para que o governo do Amapá comprasse do governo da Bahia uns motores russos, as chamadas Usinas de Camaçari, que não serviam mais ao estado do Nordeste. Então, o governo se endividou comprando essas usinas e consumiu uma quantidade incrível de óleo diesel. A medida permitiu que não ficássemos 12 horas seguidas sem energia, mas foi apenas um paliativo. O custo foi muito alto, o estado ficou endividado para pagar esses motores, que são motores velhos, que poluem demais. O Sarney fez um lobby e quebrou o galho do Antônio Carlos Magalhães, que se livrou desses motores obsoletos. Esse é apenas um dos exemplos de como um dos homens mais poderosos do país não trouxe quase nada para o desenvolvimento do nosso estado.

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Repórter do Projeto Informação e Diálogo na Sociedade Amazônica / Amigos da Terra – Amazônia Brasileira