No início de 2003, a Guerra do Iraque monopolizava o noticiário internacional. Sob o argumento de que o ditador Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, o governo de George W. Bush iniciara uma pesada ofensiva contra o país árabe. A operação avançou rapidamente e 20 dias após o início do conflito tropas norte-americanas cobriam a cidade de Bagdá com uma intensa chuva de mísseis.
No escritório da rede de TV Al Jazira na capital iraquiana, ouvia-se uma interminável sequência de explosões e disparos, como se a guerra fosse invadir o local a qualquer momento. Enquanto parte da equipe da emissora queria subir ao telhado do prédio para registrar a troca de tiros, o produtor sênior Samir Khader continha os ânimos, pedindo que esperassem o combate se afastar. Durante algum tempo, técnicos, produtores e repórteres apenas ouviram os estrondos e estampidos. Quando o conflito pareceu arrefecer, Khader ordenou que o correspondente Tarek Ayub e um operador de câmera subissem à cobertura. Minutos mais tarde a transmissão teve início, mas tudo que se via na sala de edição era a imagem do correspondente sentado no chão, com as costas apoiadas contra uma barricada de sacos de areia. Usava um pesado capacete de combate e um colete à prova de balas azul escuro, que lhe cobria o tronco até o pescoço. Trazia no rosto uma expressão tensa, mistura de medo, incompreensão e ansiedade.
Da sala de controle, o editor ordenou ao cinegrafista que deixasse de filmar o repórter, voltasse as lentes para a rua e procurasse mostrar cenas do bombardeio que destruía a cidade. O técnico obedeceu e passou a procurar imagens aleatoriamente.
A face de Bin Laden
Enquanto isso, outro corresponde da Al Jazira na cidade, ao telefone com um editor, avisou que um caça norte-americano se aproximava da emissora com o nariz baixo, numa manobra característica de ataque. O cinegrafista que estava com este segundo correspondente acompanhou o voo rasante da aeronave e registrou o momento em que três pequenos pontos incandescentes se desprenderam do caça. Três mísseis lançados simultaneamente. Um deles atingiu em cheio o telhado do escritório da Al Jazira, matando na hora o correspondente Tarek Ayub e ferindo o operador de câmera. Depois do ataque, e da morte de jornalistas de outras empresas também atingidos por fogo norte-americano, os EUA se pronunciaram, afirmando que a única forma segura de cobrir o conflito era acompanhando seu exército. Quem escolhesse trabalhar de outra maneira estaria se expondo ao perigo, por sua própria conta e risco.
Os acontecimentos acima foram mostrados no documentário Control Room (Sala de Controle, em livre tradução), da cineasta egípcio-americana Jehane Noujaim, que retrata o trabalho da Al Jazira na Guerra do Iraque. Ainda hoje não se sabe se o ataque à emissora foi ou não proposital, mas o incidente foi o ápice da tensão entre a TV árabe e o governo norte-americano.
O acirramento de ânimos começara anos antes, após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando a organização fundamentalista islâmica Al Qaida lançou dois aviões contra as torres gêmeas do World Trade Center e um sobre o Pentágono (sede do exército norte-americano), no maior atentando terrorista da história. Dias após os ataques, o mundo conheceu, por meio da Al Jazira, a face de Osama bin Laden, chefe do grupo fundamentalista, que assumiu em vídeo a autoria dos atentados. Quando foi escolhida pelo terrorista saudita para divulgar seu material de propaganda, a emissora já era a maior rede de notícias do mundo árabe, mas seguia completamente desconhecida no Ocidente. É provável que Bin Laden tenha escolhido a emissora por sua ampla penetração no Oriente Médio, mas não foi assim que a maior parte do Ocidente enxergou a escolha.
“A emissora pode ser considerada revolucionária”
Como resposta aos atentados de 11 de setembro, os EUA iniciaram uma ofensiva militar contra o Afeganistão – que se desdobra até hoje. Durante os ataques norte-americanos, o escritório da Al Jazira no Afeganistão também sofreu bombardeios, o operador de câmera da emissora Sami al Haj foi detido e encarcerado por sete anos na prisão de Guantánamo (instalação norte-americana situada em Cuba, onde suspeitos de terrorismo são mantidos presos, muitas vezes sem direito a julgamento). Como no caso do Iraque, as ações militares contra a rede no Afeganistão seguem sem maiores explicações ou justificativas.
Por ter conhecido a emissora por meio da divulgação dos vídeos, a maior parte do mundo não árabe automaticamente a associou ao terrorismo. A rede passou a ser constantemente acusada de ser porta-voz da Al Qaida ou até de ser patrocinada por organizações terroristas. Contudo, se há algo que a Al Jazira pode dispensar é um patrocinador oculto. Dinheiro é o que não falta à emissora, a menina dos olhos de Hamad bin Khalifa al Thani, emir do Qatar, membro de uma família que governa o país desde o século 19. Ele fundou o canal de notícias em 1996, pouco depois de dar um golpe de Estado no próprio pai, que passava férias na Suíça, e assumir o governo do país que é dono do maior Produto Interno Bruto per capita do mundo, segundo relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2010. O dinheiro, como acontece com boa parte dos países da região, vem das gigantescas reservas de petróleo e gás natural que descansam sob o solo desértico da pequena península do Qatar.
A constatação de que a emissora é mantida pelo infindável dinheiro estatal a exime da acusação de ser patrocinada pelo terrorismo. Ao mesmo tempo, o fato de o governo qatariano estar longe de ser uma democracia é, atualmente, a maior fonte de crítica de especialistas à rede de notícias. Para o professor André Martin, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), pelo nível de liberdade editorial que possui, “a emissora pode ser considerada revolucionária para os padrões árabes”, apesar de seus proprietários, como os da maioria dos meios de comunicação do planeta, terem, obviamente, outros interesses.
A ótica da população
Segundo Martin, o fato de o Qatar ter sido o primeiro país árabe a apoiar financeira e militarmente as ações armadas contra o ditador Muamar Kadafi, da Líbia, mostra que o país não tem uma postura neutra diante dos conflitos, o que poderia contaminar a cobertura da emissora. Al Jazira, em árabe, significa “A Península”, numa referencia àpenínsula arábica, que abrange Arábia Saudita, Qatar, Kuait, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Omã e Iêmen, todos países islâmicos. O objetivo declarado do emir Thani ao fundar a emissora era transformar seu reino numa referência cultural no Oriente Médio. Ainda não é possível dizer se ele cumpriu ou não a meta, mas o poder e o destaque que o Qatar ganhou com o trabalho jornalístico da emissora dificilmente seriam conquistados de outra forma.
Com orçamento farto, a rede de canais investiu em material humano, contratando um time de jornalistas experientes e dispostos a gastar as solas dos sapatos. A maioria deles veio de emissoras tradicionais, em especial da BBC, migração facilitada pelo enxugamento de gastos generalizado da imprensa mundial. Enquanto todos reduziam orçamento, a Al Jazira seguia aumentando seus investimentos, voltados sobretudo para a manutenção de correspondentes, mesmo em países onde não havia conflitos estabelecidos. Assim, no momento em que a ofensiva ao Iraque teve início, ao contrário de boa parte de imprensa mundial, a emissora do Qatar já tinha um escritório sedimentado em Bagdá, com repórteres que conheciam a realidade do país.
Quando se fala nos méritos da Al Jazira, é comum que se aponte para a origem árabe dos jornalistas, o que lhes dá mais liberdade para circular entre seu próprio povo. Isso, no entanto, não é determinante. Afinal, nada impede que a BBC, por exemplo, mantenha correspondentes nativos nos países árabes.
De acordo com funcionários da rede do Qatar ouvidos por Retrato do Brasil (os funcionários da emissora que falaram à reportagem preferiram não se identificar. Retrato do Brasil tentou obter declarações oficiais por várias vias, mas não obteve resposta), o grande diferencial da Al Jazira é a manutenção de um amplo e competente corpo de correspondentes ao redor do mundo e, mais do que isso, a disposição para mostrar histórias a partir da ótica da população. Na Guerra do Iraque, por exemplo, isso permitiu que, enquanto a maior parte dos jornalistas cobria o conflito acompanhando missões do exército dos EUA, a TV árabe se perdesse pelas vielas de Bagdá, mostrando a guerra pelos olhos daqueles que tinham as casas destruídas por bombas, não pelos monitores dos soldados que as lançavam de navios, tanques e caças.
220 milhões de telespectadores
A cobertura livre das amarras do Pentágono evidentemente desagradou os norte-americanos. No início do conflito, Donald Rumsfeld, o então secretário de Defesa dos EUA, condenava veementemente a Al Jazira, que divulgara imagens de soldados americanos presos e mortos em combate:
“Quando uma bomba cai, eles [a Al Jazira] agarram alguma criança, alguma mulher e fingem que a bomba atingiu a mulher e a criança. Parece-me que cabe a todos nós tentar dizer a verdade. Dizer o que sabemos e o que não sabemos e reconhecer que estamos lidando com pessoas dispostas a mentir ao mundo para favorecer a própria causa. E, quando mentem, as pessoas fatalmente acabam pegas na mentira e perdem sua credibilidade”, disse Rumsfeld.
A guerra continuou e, apesar de ter seu fim oficial declarado por Bush em maio de 2003, desdobra-se em conflitos até hoje. Durante toda a campanha no Iraque, o trabalho da imprensa seguiu sofrendo ameaças e sansões. As armas de destruição em massa, suposto motivo da intervenção militar, nunca foram encontradas. Se, por um lado, Rumsfeld e o governo norte-americano foram pegos na mentira, por outro, a rede do Qatar continuou a se expandir e, ao contrário do que previra o secretário de Defesa, suas reportagens passaram a ser vistas com cada vez mais confiança.
Em novembro de 2006, a emissora lançou um canal transmitido em inglês, que a colocaria de uma vez por todas em posição de destaque na imprensa internacional: o Al Jazira English (AJE). Inicialmente, a AJE chegou a 80 milhões de telespectadores ao redor do planeta. Foi o primeiro canal de notícias a transmitir 24 horas, em inglês, diretamente do Oriente Médio. Um importante passo para o aumento da compreensão do mundo árabe pelo Ocidente.
Atualmente, a rede Al Jazira possui cinco canais. Além da Al Jazira em árabe e da AJE, há um canal de documentários, um de esportes e um apenas com transmissões ao vivo. Suas notícias alcançam mais de 220 milhões de telespectadores em cem países dos cinco continentes. Para isso, conta com mais de 65 escritórios ao redor do globo e cerca de 3 mil profissionais, marca próxima à de empresas tradicionais, como, por exemplo, a norte americana CNN, que dispõe de 4 mil pessoas trabalhando diretamente na geração de notícias mundo afora.
“Acordem, há um mundo ao redor de vocês”
A política de investir em correspondentes nativos continua em vigor: dentre os mais de mil funcionários da AJE, há nada menos do que 50 nacionalidades diferentes. Na internet, a emissora também se expande com rapidez. É um dos canais de notícias mais vistos do YouTube, com 2,5 milhões de visualizações por mês. No Brasil, onde só pode ser acompanhada pela internet, a emissora possui um correspondente em São Paulo, o jornalista norte-americano Gabriel Elizondo. E, pensando especialmente no público brasileiro, a rede tem um profissional baseado em Bruxelas, o pernambucano Bernardo Jurema, com a missão de tuitar notícias da rede para o nosso país (@AlJazeeraBrasil).
Nenhum desses dados e números, contudo, pode resumir o papel fundamental que a TV árabe desempenhou nos recentes conflitos do Oriente Médio. A onda de revoltas conhecida como Primavera Árabe começou em dezembro de 2010, na Tunísia, quando um ambulante resolveu protestar após ter sua banca de frutas confiscada. A indignação de Mohamed Bouazizi, de acordo com reconstituição feita pelo jornal The New York Times, foi recebida com violência pelas autoridades. O jovem, de 26 anos, foi violentamente espancado por dois policiais. E sua resposta não poderia ser mais dramática. Bouazizi se banhou em solvente de tinta e ateou fogo ao próprio corpo. O ato desesperado de protesto ocorreu em Sidi Bouzid, capital da província de Sidi Bouzid, diante do palácio do governo local, e gerou um tsunami de protestos que, em 27 dias, derrubou o ditador Zine el Abidine.
“Creio que a missão da Al Jazira, em primeiro lugar, é educar os árabes em algo chamado democracia, no respeito à opinião alheia, no livre debate, sem tabus”, disse o produtor sênior Samir Khader, no documentário Control Room. Como se previsse o papel da emissora nas revoltas do Oriente, ele foi adiante: “É preciso tentar usar essas coisas para abalar as sociedades rígidas, tentar acordá-las, dizer: ‘Acordem, acordem, há um mundo ao redor de vocês.’ Acordem: essa é a mensagem da Al Jazira.”
Ponto privilegiado na praça Tahrir
No dia 25 de janeiro, inspirados nos acontecimentos na Tunísia, divulgados pela emissora árabe e ampliados por redes sociais como Twitter e Facebook, jovens egípcios iniciaram uma onda de manifestações organizadas sobretudo por meio da internet. Dos protestos, segundo a Al Jazira (sempre citada como fonte nas reportagens sobre o assunto), participaram cerca de 30 mil pessoas, que começaram de forma pacífica. O povo saía às ruas pedindo diminuição da pobreza e maior oferta de empregos. Não demorou, contudo, para que a situação degringolasse. Quando policiais usaram gás lacrimogêneo, canhões d’água e golpes de cassetete contra a multidão, os manifestantes responderam com pedradas e garrafadas e no fim do primeiro dia a revolta já causara duas mortes.
Com o passar do tempo, o ditador Hosni Mubarak, então há quase 30 anos no poder, endureceu a posição do governo.“Protestos não serão mais tolerados”, afirmou o Ministério do Interior do Egito, que tornou ilegais os atos públicos. Manifestantes passaram a ser presos às centenas, redes sociais foram banidas pelo governo e o número de mortos aumentava sem parar. Ao mesmo tempo, os protestos se tornavam cada vez mais intensos e, aos poucos, foram ganhando um palco fixo: a praça Tahrir, no centro do Cairo, capital do Egito. Em vez de se reunirem em manifestações e passeatas esparsas, os opositores de Mubarak passaram a acampar na praça, aos milhares, improvisando barracas para se proteger dos dias escaldantes e das noites geladas, características do clima desértico.
Enquanto os eventos se desenrolavam, e diante das ameaças de ter seu sinal de satélite bloqueado pelo governo, a Al Jazira encarregou o corresponde egípcio Ayman Mohyeldin, que havia coberto os protestos na Tunísia, de achar um ponto privilegiado para gravar os eventos na praça Tahrir. A tarefa não foi das mais fáceis, como mostrou uma reportagem da revista norte-americana GQ. Depois de uma série de tentativas frustradas, ele entrou em um prédio que tinha várias varandas voltadas para a praça, subiu até o último andar e tocou a campainha. É provável que tenha considerado o jogo ganho quando deparou com a figura de Che Guevara estampando a camiseta do sujeito que abriu a porta.
“Nenhum grupo de mídia fez a revolta acontecer”
“Você quer fazer parte da história da televisão?”, indagou Mohyeldin, garantindo, assim, uma sacada de onde a revolução egípcia passou a ser televisionada e transmitida para o mundo. Ainda no mês de janeiro, o sinal de satélite da Al Jazira foi interrompido pelo governo, e seis jornalistas, incluindo Mohyeldin, foram detidos. Como se as declarações de Donald Rumsfeld pertencessem a um passado longínquo, os EUA saíram em defesa da emissora. “Estamos preocupados com o fechamento da Al Jazira no Egito e com a prisão de seus correspondentes”, disse o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano. “O Egito deve se abrir e os repórteres devem ser soltos.” A detenção dos jornalistas durou apenas algumas horas e a cobertura não foi interrompida. Usando sinais alternativos de satélite, a emissora conseguiu se manter no ar e seguiu transmitindo os acontecimentos da praça Tahrir, ao vivo, praticamente sem interrupção, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Numa inovadora experiência, um telão foi instalado na praça e passou a transmitir os acontecimentos em tempo real, por meio da Al Jazira. Ao se ver retratada e sabendo que aquelas imagens também se espalhavam por todo o planeta, a multidão de manifestantes tinha os ânimos redobrados e não parava de crescer. “Não haveria chances de o mundo presenciar esses eventos extraordinários se os egípcios não tivessem assistido à revolução na Tunísia, transmitida em seus cafés e salas de estar pela Al Jazira”, escreveu a revista norte-americana Foreign Policy. Apesar das tentativas de censura e bloqueio, redes sociais como o Twitter e o Facebook também seguiram ajudando a revolta a se espalhar com incomum rapidez.
Andrew Stroehlein é o diretor de comunicação da International Crisis Group, uma organização internacional que tem o objetivo de evitar e solucionar conflitos internacionalmente. Segundo ele, no caso do Egito, imprensa e mídias sociais trabalharam lado a lado. “As reivindicações apareciam nas mídias sociais, depois a Al Jazira (ou CNN, France 24, BBC) ia investigar. E, quando via que as queixas eram reais, divulgava isso, dava credibilidade, ampliava a mensagem. Foi uma simbiose muito interessante”, disse Stroehlein em entrevista por e-mail a Retrato do Brasil. Porém, segundo ele, é necessário relativizar a importância da imprensa como um todo: “Devemos deixar claro que nenhum grupo de mídia fez a revolta acontecer. A chave para isso foi a disposição do povo de tomar as ruas, superando o medo que tradicionalmente impedia que fizesse isso com tamanha intensidade.”
O logotipo da Al Jazira
Apesar de não ter motivado os protestos, a presença da imprensa, em especial da Al Jazira, pode ter impedido um massacre. Não evitou, contudo, atos de violência. Quando Mubarak anunciou publicamente que não deixaria seu posto, os manifestantes responderam reunindo 1 milhão de pessoas na praça Tahrir. O governo, por sua vez, agrupou militantes de diversas regiões do país e incitou ataques à multidão. Montados em camelos, cavalos ou a pé, eles enfrentaram os rebeldes com porretes, pedras, espadas e coquetéis molotov, numa batalha campal intermitente que durou cerca de 12 horas.
A equipe da Al Jazira seguiu cobrindo o conflito, mas teve dificuldades em permanecer em meio à multidão enquanto a manifestação ameaçava transformar-se em guerra civil. “Quando uma pessoa o vê na rua e diz que você trabalha para a Al Jazira, alguém pode lhe enfiar uma faca e ninguém vai sair em sua defesa”, disse Mohyeldin, o correspondente que conseguiu a varanda para televisionar a praça. Ele chegou a tentar acompanhar as forças pró-Mubarak como um cidadão qualquer, mas foi obrigado a recuar. Enquanto isso, ameaçado por manifestantes governistas, outro desesperado repórter teve de ir esmurrando uma sequência de portas até ser abrigado por um morador. Um terceiro correspondente da rede refugiou-se numa mesquita para passar a noite em segurança.
Quando amanheceu, a praça Tahrir continuava em poder dos manifestantes contra Mubarak. Numa das várias faixas de protesto e bandeiras erguidas pelos rebeldes, o emblema oficial, em forma de águia, havia sido substituído pela chama estilizada do logotipo da Al Jazira.
Notícias reais
Durante a tarde do dia 11 de fevereiro de 2011, o governo ditatorial de quase três décadas recuou e o vice-presidente Omar Suleiman leu um pronunciamento rápido: 18 dias após o início das revoltas, Hosni Mubarak renunciara ao poder. Em Doha, o apresentador da TV do Qatar transmitiu a notícia numa frase curta e direta: “Hosni Mubarak se foi.” Depois a cobertura da rede voltou-se para a praça Tahrir e apenas transmitiu a comemoração, sem qualquer comentário: apenas a imagem da multidão que festejava, berrando, pulando, dançando e agitando bandeiras.
No dia 13 de abril, Mubarak sofreu um infarto durante um depoimento e está internado desde então, com a saúde agravada por um câncer de estômago. Em 3 de agosto deve ser julgado por suposta relação com assassinatos ocorridos durante os protestos contra ele. Além de Tunísia e Egito, a Primavera Árabe causou manifestações na Líbia, na Síria, no Iêmen e no Bahrein.
A Al Jazira, que não é oferecida por nenhuma operadora de TV a cabo nos EUA e está banida em uma série de países do Oriente Médio, recebeu no início de março um inesperado apoio da Casa Branca: a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, fez um pronunciamento sobre a rede. Como se respondesse à maldosa fala de Rumsfeld, homem que ocupava seu cargo em 2003, disse que a TV do Qatar oferecia “notícias reais” e que, por isso, vinha ganhando espaço em território norte-americano. “Você pode não concordar com isso, mas a emissora passa a sensação de transmitir notícias reais em vez de milhões de comerciais”, disse a mulher mais poderosa dos EUA, casada com um ex-presidente.
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[Tomás Chiaverini é jornalista]