‘O que antecipamos dificilmente ocorre; o que menos esperamos geralmente acontece.’ A sentença é antiga. Foi cunhada por Benjamin Disraeli no século 19. Aplica-se à surpresa com que o governo e a mídia receberam a explosão no canteiro de obras de Jirau, Rondônia, em meados de março, seguida por paralisações e manifestações de descontentamento em diferentes obras do PAC. Certo? Errado.
A surpresa é menos isso do que uma propensão a não enxergar problemas desagradáveis.
Tenha-se como premissa que o jornalismo brasileiro, nas condições atuais, depende muito do governo. Não em sentido diretamente financeiro, no caso dos veículos mais independentes, mas em matéria de conteúdo noticioso.
Essa constatação é antiga e nem se pode dizer que tenha sido muito diferente em tempos idos, embora se possa eleger a ditadura como marco referencial do aumento de dependência, devido à censura. Como encher páginas e páginas, ou horas e horas, sem publicar o que era oficialmente permitido?
O governo fica mais perto
A dificuldade hoje tem a ver com o famoso modelo de negócios, ou, menos pomposamente, com a dificuldade de financiar mais e melhor a apuração jornalística (que dispõe de mais tempo; não se questiona a qualidade profissional dos repórteres).
‘Cobrir’ governos é mais barato, por certo. Basta pensar na logística dessa operação, no caso mais oneroso um deslocamento entre a redação e o respectivo palácio, ou prédio de ministério ou secretaria (estadual ou municipal). O custeio cai vertiginosamente quando basta o telefone. E mais ainda quando se usa o correio eletrônico, amortizado o custo inicial do computador e conexos.
Além disso, é possível reproduzir sem peso na consciência o declaratório oficial, ao passo que é impossível ter certeza do que ocorre em um lugar qualquer, próximo ou remoto, sem enviar a reportagem para lá. A menos que se disponha de um testemunho dotado de completa credibilidade.
Cegueira difícil de explicar
Tudo isso para dizer que governo e mídia cochilaram, no caso de Jirau. De Jirau e, principalmente, de uma miríade de obras do PAC, cuja importância simbólica e política – para não dizer econômica – é realçada pela designação de ‘mãe do PAC’ com que a então ministra e logo candidata Dilma Rousseff foi exaltada diante da nação, em 2010.
Não é que a mídia tenha racionado reportagens sobre canteiros de obras novos e antigos. Ao longo de 2010 foram feitas muitas matérias sobre reclamações trabalhistas, por exemplo na obra de Santo Antônio, no mesmo Rio Madeira em que se situa Jirau.
Por que, então, meios importantes, como a TV Globo, o Estado de S.Paulo e o Valor Econômico falaram inicialmente em ‘vandalismo’ (haja vandalismo para destruir em pouco tempo 70 alojamentos, 43 ônibus e 15 carros)? (A Folha de S.Paulo usou a palavra ‘revolta’ e o Globo, ‘rebelião’. Não ecoaram a manifestação oficial da construtora Camargo Corrêa.)
Por que o governo levou um susto, se o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, declarou no dia 29/3 que ‘de fato, em Jirau, a decisão da empresa de antecipar a entrega da obra provocou maior concentração de trabalhadores’ e, por isso, ele havia ponderado que ‘era o caso de rever o contingente para diminuir a tensão’?
A longa sombra do escravismo
Por que, sobretudo, até agora não se fez uma reportagem que mostre como esses episódios atestadores do atraso brasileiro têm em comum serem banhados pela longa sombra do escravismo? Não se seguem padrões, não do século 21, mas da segunda metade do século 20, seja em obras grandes, médias, pequenas – as que mais provocam mortes de operários. O regime seguido pelas empresas ou empreiteiros é o da passagem do século 19 para o século 20.
José Eulálio, presidente do sindicato dos trabalhadores do Porto do Açu, obra de uma empresa de Eike Batista no litoral fluminense que passou por paralisação, disse ao Estadão: ‘As condições de trabalho aqui também são horríveis. Há muitos acidentes que são subnotificados’.
Grandes canteiros, obras distantes? Nada disso. O desprezo pela segurança e pela vida está ali mesmo na esquina, como mostram as fotos abaixo, onde operários sem capacete, em ‘cadeirinhas’ artesanais, repintam a fachada de um prédio nos limites dos Jardins com o Paraíso, em São Paulo.
Financiamento da política
Por que será? É preciso esconder as mazelas sociais de um país que se tornou ‘emergente’, ocupa novo papel no cenário internacional, serve de exemplo em matéria de disciplina monetária e programas de assistência social, deu ao mundo um líder democrático com carisma incomparável?
É, pode ser. Mas também se pode cogitar de um certo torpor, de um certo desconforto, desinteresse, falta de elã, como se dizia antigamente, por parte do governo, para falar de aspectos menos brilhantes de empresas que são as grandes financiadoras da atividade política, agora que as privatizações reduziram o estoque de estatais disponíveis para oferecer – como foi mesmo que Delúbio Soares se expressou? – ‘recursos não contabilizados’.
E, como pretendemos demonstrar acima, se o governo não apita, em muitos casos a mídia não atina.