Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

As hordas já acenderam as tochas

A Polícia Federal brasileira, somente neste ano de 2007, já fez 64 operações em todo o Brasil. Resultaram em um total de 1.120 detidos, sendo 110 funcionários públicos e nove policiais. Os nomes são variados e criativos. Vintém, Sodoma, Piratas da Lavoura, Antídoto, Lacraia, Cobra d’Água, Parabellum, Truco. Dentre elas, algumas, pelas suas peculiaridades e envolvidos, tiveram uma maior cobertura da mídia.

Todos já ouviram falar na Operação Furacão (ex-Hurricane), Navalha e Xeque-Mate.

Segundo dados contidos no site da própria Polícia Federal, a primeira delas foi deflagrada no dia 13 de abril nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e no Distrito Federal. ‘O objetivo era desarticular uma organização criminosa que atuava na exploração do jogo ilegal e cometia crimes contra a administração pública. Foram cumpridos 70 mandados de busca e apreensão e 25 mandados de prisão contra chefes de grupos ligados a jogos ilegais, empresários, advogados, policiais civis e federais, magistrados e um membro do Ministério Público Federal.’ Nomes como os de Anízio Abrahão Davi, presidente de honra da escola de samba Beija Flor de Nilópolis, e Aílton Guimarães, presidente da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, coloriram as primeiras páginas de todos os jornais e ocuparam quase toda a grade dos telejornais brasileiros.

Também foram detidos, e levados para Brasília para prestarem depoimentos, o procurador da República João Sérgio Pereira e o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, que foi vice-presidente do Tribunal Regional Federal e havia concedido decisões favoráveis a nove empresas de máquinas de jogos eletrônicos.

A Xeque-Mate

Logo após, os telenoticiários e os jornais se ocuparam de um novo e mais fresco escândalo. Uma outra operação recebia a atenção dos veículos de comunicação. Batizada como Navalha, foi deflagrada no dia 17 de maio. Ainda de acordo com o site, o ‘objetivo da ação policial foi desarticular uma organização criminosa que atuava desviando recursos públicos federais. Cerca de 400 policiais federais foram mobilizados nos estados de Alagoas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Sergipe, Pernambuco, Piauí, Maranhão, São Paulo e no Distrito Federal para cumprir cerca de 40 mandados de prisão preventiva e 84 mandados de busca e apreensão, todos decretados pela ministra Eliana Calmon do Superior Tribunal de Justiça’.

A operação levou à prisão gente ‘da pesada’. Foram detidos o ex-governador e ex-ministro dos transportes José Reinaldo Tavares, o servidor do Ministério de Minas e Energia Sérgio Luiz Pompeu de Sá, o deputado distrital pelo PMDB Pedro Passos Júnior, dois sobrinhos do governador do Maranhão, Jackson Lago, prefeitos da cidade de Sinop, em Mato Grosso, e de Camaçari, na Bahia, e empresários da construtora Gautama, dentre eles, o seu presidente, Zuleido Soares Veras, e seu filho Rodolpho de Albuquerque Soares de Veras. Todos devido à acusação de envolvimento em um esquema de fraudes em licitações e desvio de dinheiro público.

A terceira grande operação a despertar a atenção da mídia é a Xeque-Mate, desencadeada no dia 04 de junho. ‘Foi o resultado de dois inquéritos policiais que foram conduzidos pela Delegacia Especializada de Repressão a Crimes Fazendários da Superintendência Regional da Polícia Federal no Mato Grosso do Sul.’ Tem ‘como objetivo cumprir mandados de busca e apreensão e mandados de prisão temporária contra envolvidos em crimes como contrabando, corrupção e tráfico de drogas’.

Divulgação de escutas

Esta última bateu à porta de Genival Inácio da Silva, irmão do presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, e de um de seus compadres, Dario Morelli Filho. Aliás, fazendo um parêntese, é de uma freqüência assustadora a quantidade de pessoas próximas ao presidente da República a se envolverem em escândalos de toda sorte e natureza.

Mas voltando ao tema, foi também detido o ex-deputado estadual Roberto Razuk, do Mato Grosso do Sul. Um dos principais investigados é Nilton Cezar Servo, acusado de chefiar a máfia dos caça-níqueis.

Em todas essas operações, alguns elementos são comuns. O primeiro é a presença entre os acusados de membros dos três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. E é consenso – ou deveria ser – que age certo a Polícia Federal que investiga desvios de conduta e crimes praticados contra o patrimônio e a ordem pública, não interessa onde ele esteja e de onde vem, tampouco a classe sócio-econômica dos investigados.

Entretanto, um outro elemento é comum na natureza da cobertura jornalística, feita, basicamente, com a veiculação e divulgação do material gravado em escutas telefônicas autorizadas pela Justiça. Pois a pergunta que esse artigo deseja colocar em discussão é justamente este recurso jornalístico cabível e passível de ser questionado.

Desrespeito ao direito

Atiram-se aos leões, na arena do circo midiático, os suspeitos de maneira indiscriminada. As verdades dos fatos levantados nas provas dos autos dos processos vão ficar valendo por muito tempo depois, após o trâmite judicial regular, às vezes uma pequena nota de um caso que há muito já vai ter esfriado, substituído por outro escândalo, nesta terra dadivosa neles, e novos e apetitosos suspeitos. Mas o estrago na vida dessas pessoas – algumas inocentes – e de suas famílias pode ser irreversível.

A Constituição brasileira garante um direito fundamental que é o do julgamento justo, imparcial, com ampla defesa e direito ao contraditório, ou seja, de ouvir a parte acusada. Isso tem que ser garantido não só na Constituição, mas na vida prática e concreta das pessoas. A polícia, permitindo a divulgação deste material por meio da mídia, pode estar atentando contra o direito material do indivíduo.

Explico melhor: ao liberar informações de um suspeito como se ele fosse praticamente culpado, a vida desse indivíduo, a sua honra, seu bom nome, sua imagem pública, seus familiares, sua rede social pode ser prejudicada. O seu dia-a-dia pode se transformar em um verdadeiro inferno. É sob este aspecto da vida concreta que o desrespeito ao direito humano é ferido. Assim, a mídia pode ser o palco de um julgamento público antes mesmo que aconteça o julgamento formal na esfera do Judiciário, onde só então será exercido o direito à presunção de inocência antes da culpabilidade comprovada.

O caso Escola Base

No meio desse fogo cruzado de denúncias, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, argüiu sobre os abusos cometidos na divulgação dos fatos pela Polícia Federal. O próprio ministro havia sido vitimado daquilo que configurou como um estado policial – e não um Estado de Direito – quando foi divulgado que seu nome constava em uma suposta lista de pessoas que teriam recebido ‘agrados e mimos’ dos acusados na Operação Navalha. Na verdade, a lista se referia a um homônimo do ministro.

É perigosa essa atitude da mídia, amparada por uma instituição pública. Casos clássicos de erros da imprensa devem ser aqui lembrados e mencionados. O então deputado federal Ibsen Pinheiro foi linchado em praça pública a partir de uma reportagem publicada na revista Veja nº 1314, cuja manchete de capa era ‘Até tu, Ibsen?’. O deputado era, então, forte candidato à Presidência da República e viu suas chances reduzidas a zero e sua reputação destruída.

Em março de 1994, a mídia acusou e condenou os proprietários de uma pequena escolinha infantil de bairro, a Escola Base, cujos proprietários e funcionários foram acusados de fazerem orgias com crianças menores de cinco anos. Manchetes como ‘Professor ensinava a transar’ estamparam jornais popularescos e um comentarista do extinto telejornal Aqui e Agora, do SBT, chegou a pedir a pena de morte – não prevista em nosso Código Penal – para os envolvidos. Nem é preciso dizer que os acusados quase tiveram a pena sugerida pelo comentarista.

Compromisso com cidadania

O ex-ministro da Saúde do governo Collor não teve destino diferente no que ficou conhecido como ‘farra das bicicletas’, a partir de uma reportagem divulgada pelo jornal O Globo.

Na história mais recente, a revista Veja se retratou pela cobertura do caso Eduardo Jorge durante o governo FHC.

Seja pela necessidade de dar um ‘furo’, de agregar valor de notícia ao veículo, seja pela competição de mercado, a imprensa também atropela, é algoz, e essa postura jornalística é passível de ser eticamente questionada.

A lei existe para servir a todos; para condenar quem é culpado e para proteger quem não carrega o ônus da culpa, independendo de classe econômica ou função exercida. Aos culpados, a punição prevista e de acordo com o delito cometido. Ajudaria se tivéssemos um sistema prisional mais justo, é verdade. Mas a lei não é instrumento de vingança e, sim, fruto de um processo civilizatório e humanístico arduamente conquistado. Há um ‘quê’ de barbarismo neste espetáculo todo. Trucidados na arena, esses assassinatos costumam provocar urros de alegria na massa voraz que rapidamente acende suas tochas. Isso cheira a Inquisição. A imprensa não pode fazer parte do circo. Ela tem um compromisso, um laço indissolúvel, com o exercício da cidadania.

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Estudante de jornalismo da Universidade Fumec, Belo Horizonte, MG