Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As imagens do risível

As edições dos principais jornais do país têm gerado, nas últimas semanas, galeria de fotos na qual a política, seja em âmbito nacional, seja em esfera internacional, sob o patrocínio de seus representantes, é transformada em verdadeira arena do riso. Nela, como já é sabido, o político se torna produto midiatizado e, nessa condição, suas imagem e função recebem a maquiagem do entretenimento. Vamos, pois, ilustrar com alguns recentes exemplos:

** foto 1 (a dança de Powell: O Globo, 3/7), com seguinte legenda: ‘Descontraído e vestido como integrante da banda Village People, o secretário Colin Powell canta e dança numa festa em Jacarta’;

** foto 2 (Maluf, em versão ‘Líbano-nipônico-tupiniquim’: Folha de S. Paulo, 5/7), seguida da respectiva legenda: ‘Vestindo um tipo de quimono, o ex-prefeito faz campanha no bairro da Liberdade’;

** foto 3 (Marta in love: Folha de S. Paulo, 7/7), com a presente legenda: ‘Imaginação: Marta Suplicy dança com o marido, Luís Favre, ao som de Imagine, de John Lennon, tocada pelo filho Supla, no primeiro dia de campanha oficial em São Paulo’;

** foto 4 (a dentada do ‘fome zero’: Folha de S. Paulo, 8/7), devidamente legendada: ‘Gula: De tailleur e sapatos pretos, Marta Suplicy come meio sanduíche de mortadela (200 calorias), seguido de pastel de bacalhau (350 calorias), no Mercado Municipal de SP’;

** foto 5 (o êxtase de Serra: Folha de S. Paulo, 8/7), assim descrita: ‘Luxúria: José Serra passa por casa de sexo explícito no centro, onde cumprimentou porteiro; palmeirense, foi abordado por Cotonete, torcedor-símbolo do Corinthians’.

A passarela e o picadeiro

As fotos selecionadas – e outras mais haveria – traduzem, sem disfarce, o enredo circense a que parece destinar-se a atuação do político (não vamos esquecer as imagens imperdíveis da ‘festa caipira’, sob a liderança do presidente da República), a partir do momento em que a instituição da política se permitiu tragar pelas estratégias do marketing. Sob o primado da ‘popularidade a qualquer preço’, o político se rende às mais diferentes tentações do ridículo e do constrangimento (nos raros casos nos quais tal sensação sobrevive), pois a julgar pelas aparências, a maioria parece indicar satisfação, compreendendo que ser político significa obrigatoriamente submeter-se a idiotices e infantilidades. Bem, é claro que para esse tipo de conduta também há platéia, pronta a converter em votos. Por outro lado, que percepção equivocada leva a não computar perda de votos?

Talvez, a resposta não seja difícil. Imaginar o possível ganho como perda representaria desemprego para os ‘marqueteiros’. Por sua vez, a mídia também perderia certo tipo de pauta. A conclusão, portanto, é que o esquema convém a todos que com ele, em algum nível, obtêm lucro ou vantagens. Assim, o sistema vigente passa por continuada realimentação, mesmo que, com isso, progressivamente se esvazie o sentido maior da política, bem como a austeridade com a qual se deveria tratar a democracia, em nome de enobrecê-la. A quem interessa, senão ao culto da despolitização, a permanente exposição de políticos entre a ‘passarela’ e o ‘picadeiro’?

Em outros termos, no novo modelo, político não é mais um ser real, é objeto-imagem; é um corpo virtual. A propósito, vale registrar, como indicação, a leitura de Corpo e comunicação: sintoma da cultura, de Lucia Santaella (Paullus, 2004), em especial, o capítulo 9 (‘O corpo nas mídias’). Uma vez convertido em imagem, o ‘corpo’ não passa de mera ocupação de um lugar que, por sua vez, também não é fixo. O político e o lugar dizem respeito a uma nova configuração na qual imagem e tela (e variantes) promovem o efeito desejado.

Gisele Bündchen candidata

A edição da Folha de S. Paulo (9/7) é bastante esclarecedora, ao dedicar página inteira à matéria ‘Candidatos retocam rosto para atrair eleitor’. Na mencionada matéria, constam as fotos de campanha de Marta Suplicy, José Serra, Luiza Erundina e Paulo Maluf. Lado a lado, os respectivos rostos (real e virtual). Em todos, a diferença é espantosa. Completando a matéria, destaca-se um box no qual há o depoimento de Bob Wolfenson (fotógrafo):’

‘Muitas vezes vejo a imagem finalizada pela agência de publicidade do candidato e me espanto ao ver no que ela se transformou. Mas não ligo, é como uma foto de produto (…). Mais que a jovialidade, é a beleza que denota mais credibilidade’.

Como é de hábito, a matéria em questão não assume posições incômodas. Afinal, jornalismo acrítico parece ser a fórmula do sucesso. Em nome da liberdade de ‘impressão’, o leitor é que deve julgar. Quanto ao fotógrafo, nada a comentar, dada a absoluta transparência de sua avaliação. Para ele, político é produto e pronto. Tudo está validado. Compreende-se, pois, que, em tempos de ‘politicamente correto’, o certo é o político não dizer o que realmente pensa e nem mostrar a cara que realmente tem. Assim, sob inspiração do fotógrafo, em versão de ‘cientista político’, para quem ‘é a beleza que denota mais credibilidade’, devemos todos aprender bem a lição. Como conclusão, suponho que algum partido político, além de contratá-lo, haverá de lançar a candidatura de Gisele Bündchen. E aproveitando o período de revalorização de Cazuza: ‘Brasil, mostra a tua cara…’

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro