Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As indignações seletivas

 

A Globo News, a Época e vários jornais deram declarações de Luiz Antônio Pagot, ex-diretor-geral do Departamento Nacional de Transportes Terrestres (Dnit), foco principal de denúncias de corrupção no Ministério dos Transportes em 2011. De modo geral, o destaque foi para as denúncias. Praticamente em nenhuma reportagem, nesta reaparição de Pagot, se mencionaram as acusações de que ele foi objeto e que provocaram sua demissão em julho passado.

As reportagens tiveram, porém, ênfases diferentes. Na Globo News (21/4), Gerson Camarotti e Renata Lo Prete chamaram a atenção para a inclusão, nos rolos de Cachoeira, de mais um partido, o PR do ex-ministro Alfredo Nascimento (que reassumiu o mandato de senador pelo Amazonas, após ter sido demitido do ministério) e do deputado Valdemar Costa Neto (SP), presidente de honra e mandachuva da legenda (Costa Neto foi quem negociou com Lula a formação de sua chapa em 2002 tendo José Alencar como candidato a vice-presidente da República). Além do PR, DEM, PSDB, PT e PMDB estão envolvidos em escutas telefônicas gravadas pela Polícia Federal.

A Época (23/4) destacou o fato de que as demissões de Pagot e de outros dirigentes do Ministério dos Transportes foram motivadas por denúncias plantadas por Cachoeira. Uma das centenas de milhares de gravações (o número real seria 230 mil, das quais 80 mil constituiriam o universo dos sucessivos vazamentos em curso) revela Cachoeira dizendo, em maio: “Enfiei tudo no r… do Pagot”.

Manipulação

Pagot caiu depois de denúncias publicadas pela Veja que envolviam também Valdemar Costa Neto e outros próceres do PR. Depreende-se que, como em outros episódios, a revista foi manipulada por seu informante Cachoeira. Na reportagem da Época, Pagot abre fogo contra a construtora Delta, supostamente associada a Cachoeira. Em entrevista ao Valor (24/4), faz acusações graves:

“O ex-diretor do Dnit disse acreditar que seu afastamento da autarquia pode estar vinculado a operações realizadas por servidores do Palácio do Planalto (…). Pagot disse não ter provas, mas suspeita que Carlinhos Cachoeira estaria por trás dos vazamentos de uma reunião sigilosa realizada no ano passado com a presidente Dilma Rousseff, em que ela teria manifestado estranheza diante de valores de contratos e aditivos. A reunião, revelada pela revista Veja, detonou a crise que varreu a pasta dos Transportes”.

Cid Gomes: “quadrilha”

Pagot agora se desfiliou do PR, partido de seu padrinho político e ex-patrão, o senador Blairo Maggi (MT). Apresenta-se como um injustiçado, um homem revoltado, vitimado por uma conspiração de delinquentes. Entretanto, pouco antes de ele ser defenestrado do Dnit, o governador do Ceará, Cid Gomes (PSB), aliado do governo, disse em público que Alfredo Nascimento era “inepto, incompetente e desonesto”, e que o Dnit era uma “quadrilha”.

Nascimento caiu dias depois de Pagot – e de ter recebido um voto de confiança da presidente Dilma Rousseff. Na mesma época, o ministro da Controladoria-Geral da União, Jorge Hage, declarou que irregularidades como superfaturamento, licitações direcionadas e pagamento de serviços malfeitos estariam “no DNA do Dnit”.

Jornais e revistas da época trouxeram sucessivas denúncias de corrupção, das quais algumas atingiam o Palácio do Planalto. Por exemplo, Pagot procurou senadores para dizer que “a parte de aditivos a obras foi feita para alavancar a candidatura presidencial de Dilma Rousseff, em 2010” (Ranier Bragon, Folha de S. Paulo, 7/7/2011). O então ainda diretor-geral do Dnit garantia “não ter havido irregularidade nessas ações” e informava ter recebido “ordens superiores” de, entre outros, Paulo Bernardo, à época no Planejamento, hoje nas Comunicações.

Ressalvas ao financiamento da campanha ao Senado da mulher de Bernardes, Geisi Hoffmann, hoje chefe da Casa Civil, foram noticiadas. Bernardo e Gleisi disseram ser apenas conhecidos dos donos da construtora Sanches Tripoloni, apontada como beneficiária de contratos com o Dnit.

O Globonoticiou que uma empresa de Gustavo Morais Pereira, filho de Alfredo Nascimento, teve crescimento patrimonial de 86.500% em dois anos. A Forma Construções fora fundada em 2005 com capital social de R$ 60 mil, quando Gustavo tinha 21 anos, e chegara a mais de R$ 50 milhões em 2007.

“O centro da rede”

Em 17/7/2011, na Folha e no Globo, Elio Gaspari escreveu:

“Não há novos escândalos, há apenas novas erupções, beneficiadas por uma rotina em que uma crise só se exaure quando é substituída por outra, na qual estão personagens que passaram despercebidos na anterior.

“O centro dessa rede fica no Palácio do Planalto, ora na Casa Civil, ora na coordenação política e sempre na coleta e repasse de doações.

“(…) O novo escândalo [refere-se ao mensalão] expôs o loteamento, pelo Planalto, de cargos nos Correios, Banco do Brasil, Instituto de Resseguros do Brasil, Furnas, bem como a manipulação, pela Casa Civil, dos fundos de pensão de estatais. Nos governos anteriores aconteceram episódios semelhantes, mas não tiveram a articulação e a blindagem conquistada pelo comissariado. Trinta e dois parlamentares acusados de ter participado do ‘mensalão’ e de roubalheiras nas verbas da saúde tiveram um crescimento patrimonial de 32% entre 2002 e 2006.

“(…) Burattis, Waldomiros, Delúbios, Erenices e até mesmo Pagots foram peças acessórias de uma máquina.”

Como tratar a base aliada

O PR de Valdemar Costa Neto e Alfredo Nascimento não conseguiu nomear o novo ministro dos Transportes, mas mostrou poder de fogo ao provocar a queda do petista Hideraldo Caron, diretor de Infraestrutura Rodoviária do Dnit. Além disso, em 12 superintendências regionais cujos chefes haviam declarado à Justiça Eleitoral filiação partidária, sete estavam nas mãos do PR.

Dilma anunciou que não aceitaria mais indicações políticas para o Ministério dos Transportes, até hoje entregue a Paulo Sério Passos, o substituto de Nascimento. Lula disse ter receio de que Dilma ficasse isolada da base governista.

Existe aí uma questão relevante. A primeira proposta de montagem da base do governo, feita por José Dirceu após a vitória eleitoral de 2002, mirava o PMDB. Seria uma aliança análoga à que Fernando Henrique Cardoso fez com o PFL durante seus oito anos de governo. Lula não topou. O governo lançou-se ao varejo e em fevereiro de 2004 o jornalista Carlos Chagas denunciava na Tribuna da Imprensa a existência de uma mesada para deputados que votassem com o governo. A denúncia foi reiterada pelo deputado Miro Teixeira em setembro, ao Jornal do Brasil. Só explodiu com a entrevista de Roberto Jefferson a Renata Lo Prete, da Folha, em junho de 2005.

Para a eleição de Dilma, em 2010, Lula montou uma composição com o PMDB de Michel Temer, José Sarney, Renan Calheiros. Mas talvez não se tenha afastado da concepção de que é preciso ter muitos espetos na grelha da churrasqueira. Catia Seabra e Natuza Nery escreveram na Folha (17/7/2011):

“O ex-presidente tem avaliado que, graças à aliança de 15 partidos, Dilma ainda possui capital político para tomar medidas drásticas, como a exoneração em massa de dirigentes nos Transportes.

“Sua apreensão está na hipótese de desperdiçar esse ativo agora: ele teme que o troco aconteça num momento de fragilidade do governo.

(…)

“Petistas afirmam que Lula apoia o rigor de Dilma, mas discorda dos métodos, sobretudo do tratamento dado ao PR. Após as denúncias, a sigla foi excluída do processo de sucessão na pasta que comanda há quase nove anos.”

O então líder do PR na Câmara, Lincoln Portela (MG), advertiu que Dilma estava “brincando com fogo”. A maneira como a presidente enfrentou a crise foi, entretanto, saudada por articulistas como Janio de Freitas, da mesma Folha. A presidente repetiria a dose em crises posteriores. Sempre sem consequências punitivas para os afastados. O método ganhou o nome de “faxina”, que Dilma considera depreciativo.

A CPI de 2012

Voltemos a abril de 2012.

Como desejado por alguns, mas ao mesmo tempo inerente àquilo que o general De Gaulle chamava “a força das coisas”, a fogueira das denúncias não pára de ser alimentada. Cria-se, assim, risco de tumulto na CPI do Cachoeira: muito barulho, impossibilidade de se examinar seriamente tanta denúncia, produção de farto noticiário capaz de ocupar fugazmente a cena.

A principal arma escolhida por Lula e companheiros seus contra possíveis consequências danosas do julgamento do mensalão no STF consiste em dizer que se trata de uma “invenção da mídia”. Em aparente paradoxo, da mesma mídia que dá provas quase diárias de apreço pela presidente Dilma Rousseff e de colaboração com ela.

Mais especificamente, mira-se a Veja, na qual se pôde ler, em alusão à “faxina”: “Toda a força à presidente” e “Sigam-na os que forem brasileiros”.

Existem legiões de críticos da revista, que desde a primeira eleição de Lula – saudada numa capa como “triunfo histórico” do “primeiro presidente de origem popular” − decidiu se apresentar como porta-voz de um pensamento conservador cujos traços talvez merecessem estudo mais circunstanciado. Ou nem tanto.

Criticar é diferente de demonizar

Neste Observatório da Imprensa fizeram-se ao longo dos anos infindáveis reparos e questionamentos aos métodos da revista, à editorialização das reportagens, às demonizações que ela promoveu. Dias atrás foi publicado aqui um tópico que partia da hipótese de manipulação da revista (“Mal-estar: Dilma, Falcão e Veja”), o que é muito grave para um veículo jornalístico.

A Veja andou no fio da navalha em muitas ocasiões e em alguma delas se cortou. Até hoje não há explicação clara para o episódio de espionagem num hotel de Brasília em que José Dirceu recebia aliados e correligionários (“O poderoso chefão. O ex-ministro José Dirceu mantém um ‘gabinete’ num hotel de Brasília, onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da presidente Dilma”, 31/8/2011). A Veja pode ter até desejado proteger Dilma de rivais petistas, mas o episódio lembra o do recente vídeo em que o presidente do PT, Rui Falcão, deixou patente a intenção de, com a CPI do Cachoeira, “desmascarar a farsa do mensalão”. Iniciativas canhestras, ambas.

Uma coisa é fazer jornalismo discutível, desastrado, de insinuação, preconceituoso, apelativo, objetivamente cúmplice de interesses escusos. Outra é se tornar instrumento voluntário de um bicheiro e suas ramificações mafiosas nos negócios e na política. Em alguns círculos brasilienses já se fala em “CPI da Veja”. Aqui mesmo no Observatório podem-se ler textos, reproduzidos de outras fontes, que apontam nessa direção, um dos quais intitulado, a propósito, “CPI da mídia?” (outros são “O fim do jornalismo investigativo de araque”; “Vejae a CPI de Cachoeira”; há também um artigo em tom panfletário, “Murdoch é fichinha”). A demonização da revista, de qualquer órgão de imprensa, é um método antidemocrático. Uma arma que pode ser apontada em qualquer direção.

República do caixa dois

Na ausência de uma oposição político-partidária vigorosa, a fragilização da imprensa profissional e relativamente independente (leia-se: cujo modelo de negócios depende de um quantum de credibilidade) é um risco a mais para a arquitetura do regime da Carta de 1988. Em artigo no Estado de S. Paulo (22/4), Luiz Werneck Vianna escreveu que “o presidencialismo de coalizão, na forma como vem sendo praticado, converteu-se numa política de alto risco para a democracia brasileira”.

Há críticas sérias a práticas da mídia. Dois exemplos recentes são textos de Eugênio Bucci (“Imprensa livre é imprensa transparente”) e Luiz Gonzaga Beluzzo (“Jornalismo de resultados”). São diferentes, no fundo e na forma, das vociferações enviesadas.

Que ninguém se iluda. Atrás da pretendida corregedoria-geral da imprensa mal se disfarçam motivações partidárias subalternas e apetites de vindita: muita gente se considera, numa república que naturalizou caixa dois e corrupção, prejudicada por denúncias jornalísticas.

Mal se disfarça, ao mesmo tempo, o interesse de cavar espaço para alternativas midiáticas que poderiam, no futuro, dar saudade das que viessem a destronar. Até aqui, a presidente Dilma aparece como o mais formidável escudo contra essa cavação.

A mesma Veja que hoje tantos execram publicou reportagens memoráveis ao longo de seus 44 anos de existência. Ter raiva da Veja, ou de qualquer outro veículo, não basta para qualificar crítica alguma, e nem, muito menos, ajuda a entender o que acontece. Para reforçar sua própria argumentação, ou agitação, há quem chegue a calar sobre crimes de pessoas que atacam esse ou aquele órgão de imprensa. A indignação seletiva é um refúgio de velhacos.