Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As licenças do colunismo político

Sob o título ‘Opinião pública’, o colunista Merval Pereira publicou uma reveladora coluna em O Globo de sexta-feira (10/6). Leia o texto aqui.

1. O colunista evita a palavra ‘mídia’ – que engloba os diferentes meios de comunicação de massa – e, ao modo antigo, anterior à supremacia dos meios eletrônicos, utiliza-se sempre de ‘imprensa’ – que, tecnicamente, refere-se aos meios impressos: jornais e revistas.

2. O colunista afirma que o papel da imprensa na atual crise política é crucial e menciona diversos atores de ‘nossa dramática história política’ (sic) que se referiram a esse papel, pela ordem: o presidente da República; o líder do PFL na Câmara dos Deputados; o colunista, ele próprio; e o Ministro da Fazenda.

É verdade. A crise foi iniciada pela divulgação por revista semanal de uma fita gravada de ato de corrupção nos Correios. Do ponto de vista jornalístico, ficou em segundo plano, no entanto, saber quem gravou e com quais objetivos a fita foi gravada, quem são os corruptores e como essa fita chegou ao conhecimento da revista. Trata-se de escândalo político transformado em escândalo midiático. Está em disputa a reputação e a confiança dos grupos políticos no controle do poder (J. B. Thompson). E a mídia não é um ator neutro nessa disputa.

3. O colunista afirma que a Constituição brasileira representa uma ameaça à liberdade de expressão. Ou seja, ele considera que a imprensa está acima da Constituição e não – como todas as outras pessoas e atividades do país – submetida a ela.

4. O colunista afirma que a imprensa enfrenta no mundo uma ‘batalha de credibilidade’ e que no Brasil há um permanente desconforto na relação da imprensa com a sociedade. Mesmo assim, afirma ele, a sociedade brasileira depende da imprensa para ter seus direitos respeitados e para que denúncias sejam investigadas pelos governos.

Alguém poderia perguntar: que desconforto é esse e o que o provoca? A qual sociedade o jornalista está se referindo? Seria àquela ‘elite dominante [que] é, ao mesmo tempo, a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; [numa] circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa’ (B. Kucinski) e que não alcança sequer 4% da nossa população total?

A sociedade por ele referida certamente exclui a imensa maioria de brasileiros que tem seu direito à comunicação desrespeitado diariamente por nunca ter seu ponto de vista representado com isenção na mídia.

Com relação às denuncias, pode-se perguntar: quais denúncias? Estariam incluídas aquelas que raramente vêm à tona e envolvem, por exemplo, as relações promíscuas e venais do jornalismo econômico com o capital financeiro – a exemplo do que se revelou recentemente nos Estados Unidos após o colapso da Enron?

5. O colunista prossegue afirmando que há um questionamento quanto à irresponsabilidade (denuncismo) ou superficialismo do noticiário e que, no Brasil, a imprensa se transforma no Quarto Poder por uma desfunção dos demais poderes. Aqui o colunista acerta quanto à irresponsabilidade (denuncismo) ou superficialismo do noticiário.

Já com relação ao Quarto Poder, pode-se perguntar: o colunista está insinuando que a imprensa é um poder ‘descolado’ dos outros três (na divisão de Montesquieu: Executivo, Legislativo e Judiciário) e, portanto, livre para fiscalizá-los com independência, objetividade e equilíbrio?

Se for isso, sugerimos que ele consulte a pesquisa e a literatura produzida na área de Comunicação nos últimos 30 anos. Quarto Poder nessa perspectiva é coisa de museu. A grande mídia do mundo contemporâneo transformou-se ao mesmo tempo em poder e instrumento dos interesses que controlam ‘os poderes’. Faz tempo argumenta-se sobre a necessidade de um Quinto Poder (I. Romanet), um poder cidadão, exatamente para enfrentar os outros quatro, sobretudo o poder dos conglomerados da mídia privada e comercial.

Hoje um pequeno grupo de megacorporações – e seus associados nacionais – controla a mídia em todo o mundo. No Brasil, a ausência histórica de regulação do setor fez com que se consolidassem uns poucos grupos com base na propriedade cruzada, que permite o controle simultâneo de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão no mesmo mercado. É essa propriedade cruzada que possibilita a uns poucos colunistas a capacidade da onipresença, pois eles estão no rádio, na TV e no jornal, potencializando ainda mais a sua influência individual.

6. O colunista menciona também uma recente pesquisa do Ibope que revela o aumento percentual da credibilidade dos jornais no Brasil. Ela teria sido maior em maio de 2005 (74%) do que era em setembro de 2003 (65%). A mesma pesquisa indica que, entre 17 instituições, os piores índices ficaram com os políticos (87%), os partidos (85%), a Câmara dos Deputados (74%) e o Senado Federal (71%).

Pena que as informações técnicas não tenham sido fornecidas: quem financiou a pesquisa, qual o universo pesquisado, quais as perguntas feitas aos entrevistados? Na verdade, os dados fornecidos caminham no sentido inverso de tudo que tem sido divulgado sobre a credibilidade da imprensa, tanto no Brasil quanto no mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a perda geral da credibilidade provocada por fatos emblemáticos como a descoberta de reportagens inventadas e a cobertura ‘oficialista’ da invasão do Iraque, tem sido utilizada para explicar, inclusive, a queda continuada da circulação de jornais e revistas.

Por outro lado, cabe perguntar se a imprensa (mídia), com a desqualificação permanente que faz dos políticos e da política, teria alguma responsabilidade no fato (danoso para a democracia) de que políticos, partidos e as duas Casas do Congresso Nacional tenham obtido os piores índices de credibilidade dos entrevistados entre as instituições avaliadas na referida pesquisa.

7. O colunista descreve detalhadamente as posições do ministro da Fazenda em relação à imprensa. Uma delas está expressa na seguinte frase: ‘A pressão da sociedade, refletida pela imprensa, faz com que os governos sintam seus limites e se ajustem à vontade popular’.

Está implícita aqui a famosa ‘teoria do espelho’, segundo a qual a mídia ‘reflete’ o que ocorre na sociedade. Em outras palavras, a mídia imparcial expressaria a pluralidade e a diversidade de opiniões que existem na sociedade.

Apesar das pesquisas de Comunicação já haverem descartado totalmente a teoria do espelho construindo uma tradição oposta a ela, que vai desde a teoria dos gatekeepers até os estudos mais recentes sobre noticiabilidade, enquadramento e agendamento, ela, a tal teoria, sobrevive como fonte de legitimidade à qual recorrem empresários e jornalistas vitoriosos da grande mídia privada. Eles tentam construir de si mesmos a imagem de simples mediadores entre os acontecimentos e seus leitores/ouvintes/espectadores.

Pergunto ao leitor, apoiado em sua própria experiência pessoal: você acredita nessa teoria?

Na frase atribuída ao ministro Palloci pelo colunista do Globo, a imprensa aparece também como a instituição que expressaria, para os governos, a ‘vontade popular’. Ops! Um momento. Estariam o ministro da Fazenda e o colunista insinuando que não precisamos mais de eleições porque a imprensa cumpriria o papel de expressar a ‘vontade popular’ nas democracias liberais representativas?

8. Finalmente, não fica claro porque o título da coluna publicada no Globo é ‘Opinião pública’. Parece que o laureado colunista atribui a si mesmo e às suas opiniões privadas o papel de ‘representante do público’ e, dessa forma, acredita expressar a opinião pública. Mas quem teria delegado a ele essa representação? O título mais correto para a coluna talvez fosse ‘Opinião publicada’.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)