Na década de 1950, o semiólogo francês, Roland Barthes, lançou seu célebre livro Mitologias, reunindo uma série de pequenos artigos seus publicados em jornais e revistas. Seus textos falam dos mitos do cotidiano da sociedade francesa. Décadas depois, suas mitologias continuam em evidência, como podemos ver pelo trecho abaixo transcrito:
Fotogenia eleitoral
Certos candidatos a deputado ornam com um retrato o seu prospecto eleitoral. Isto equivale a supor que a fotografia possui um poder de conversão que se deve analisar. Para começar, a efígie do candidato estabelece um elo entre ele e seus eleitores; o candidato não propõe apenas um programa, mas também um clima físico, um conjunto de opções cotidianas expressas numa morfologia, um modo de vestir, uma pose. A fotografia tende, assim, a restabelecer o fundo paternalista das eleições, a sua natureza ‘representativa’, desvirtuada pelo voto proporcional e pelo reino dos partidos. Na medida em que a fotografia é elipse da linguagem e condensação de todo um ‘inefável’ social, constitui uma arma antiintelectual, tende a escamotear a ‘política’ (isto é, um conjunto de problemas e de soluções) em proveito de uma maneira de ser, de um estatuto social e moral (…).
(…) O que é exposto através da fotografia do candidato não são seus projetos, são suas motivações, todas as circunstâncias familiares, mentais e até eróticas, todo um estilo de vida de que ele é, simultaneamente, o produto, o exemplo, e a isca. É óbvio que aquilo que a maior parte dos nossos candidatos propõe através de sua efígie é uma posição social, o conforto especular das normas familiares, jurídicas, religiosas,a propriedade infusa de certos bens burgueses(…) O uso da fotografia eleitoral supõe cumplicidade: a foto é espelho, ela oferece o familiar, o conhecido, propõe ao leitor a sua própria efígie, clarificada, magnificada, imponentemente elevada à condição de tipo. É, aliás, esta ampliação valorativa que define exatamente a fotogenia: ela exprime o eleitor e, simultaneamente, transforma-o num herói; ele é convidado a eleger-se a si próprio, incumbindo o mandato que vai dar de uma verdadeira transferência física: delega de algum modo a sua ‘raça'(…).
(…) A própria convenção fotográfica está também repleta de signos. A pose de frente acentua o realismo do candidato, sobretudo se tiver óculos perscrutadores. Nela,tudo exprime a penetração,a gravidade, a franqueza: o futuro deputado fixa o inimigo, o obstáculo, o problema. A pose a três quartos, mais freqüente, sugere a tirania de um ideal: o olhar perde-se nobremente no futuro,não afronta, domina e fecunda um além pudicamente indefinido. Quase todas as fotos a três quartos são ascensionais, o rosto aparece erguido em direção a uma luz sobrenatural que o aspira e o eleva até regiões de uma humanidade distinta; o candidato atinge o olimpo dos sentimentos elevados, onde toda a contradição política se resolve: paz e guerra argelina, progresso social e regalias patronais, ensino ‘livre’ e subsídios para beterrabas, a direita e a esquerda, tudo isso coexiste pacificamente nesse olhar pensativo nobremente fixo nos interesses ocultos da Ordem. (Barthes, Roland. Mitologias. São Paulo, Difel, 1980, p. 103; há edições mais atualizadas)
Para Barthes, o mito é uma forma de fala, despolitizada, produzida pela conotação. É uma distorção, deformação da realidade, ideologia. O mito não nega as coisas, apenas as tornam inocentes, dando-lhes uma significação natural e eterna, com o intermédio de seu caráter imperativo. Não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela sua forma. Pode ser pronunciado por várias representações: um fato, um anúncio, uma reportagem, entre outros. Usa mensagens factuais, denotativas, mas explora a conotação. Barthes sustenta que a sua função, na Mídia, é a naturalização e eternização da sociedade burguesa. O mito transforma uma contingência histórica em eternidade, imobilizando o mundo.
Atualidade
Barthes estudou a mídia, relacionando-a ao social e ao cultural. Concebeu que o signo deveria ser estudado na língua e na fala, ou seja, uma semiologia ativa, que se preocupa com o cotidiano. O signo é relativo e histórico, não é uma verdade absoluta. Assim, Barthes rompe com Saussure, para quem o signo era absoluto, e parte para um estruturalismo dialético, uma percepção que relaciona o signo com o contexto sócio-histórico, ou seja, o translingüístico também interessa ao autor.
A mídia foi objeto invariante em seus estudos. Tendo-a como ponto de partida ou chegada, aplicou categorias originalmente constituídas em sua compreensão. A fundamentação inter e transdisciplinar das categorias barthesianas permitem, ainda hoje, aplicá-las ao estudo midiático e seus produtos, aliando o campo teórico ao prático, descobrindo o poder da forma e a invariância estrutural.
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Jornalista, mestre em Comunicação, Porto Alegre