Nos últimos dois ou três anos tornou-se evidente que a chamada ‘grande imprensa’ passa por uma crise de legitimação sem precedentes, açulada pela disseminação cada vez maior da internet 2.0, que aumentou a interatividade e as possibilidades de circulação de conhecimento na rede.
No âmago de tal crise encontra-se um processo de reestruturação mercadológica de veículos tradicionais da mídia brasileira, notadamente a revista Veja – que assimilou práticas e posturas jornalísticas originadas no ambiente neocon norte-americano – e o jornal Folha de S.Paulo – que, com a saída de cena do publisher Octavio Frias de Oliveira e a ascensão de seus herdeiros, operou não apenas uma guinada à direita como a imersão em episódios eticamente inaceitáveis em um veículo de imprensa que se pretende pluralista.
Blogs vs. ‘grande imprensa’
Por sua vez, a crítica à imprensa tornou-se quase que uma atividade recreativa na internet brasileira, cuja virulência generalizante gerou até mesmo de uma sigla, tão mordaz quanto não distintiva, utilizada para caracterizar a mídia nativa: PIG (Partido da Imprensa Golpista), criada por um leitor do blog de Paulo Henrique Amorim, jornalista consagrado que aderiu ao novo esporte sem abrir mão de uma atuação mainstream numa TV sustentada pelo neopentecostalismo, em que repete várias das vicissitudes criticadas nas arenas virtuais – inclusive na sua.
Também não é sem mordacidade que se constata que sem a ‘grande mídia’ a blogosfera perderia grande parte de seus temas – e de sua graça. Trata-se, é evidente, de um paradoxo – e de uma realidade que muitos blogueiros insistem em fingir não ver. Frise-se que a crítica à imprensa é não apenas bem-vinda, mas, neste momento mais do que nunca, necessária. Só que tem levado a um sentimento antimídia generalizado que produz distorções e equívocos que se perpetuam, como a constatação de que destruir a ‘grande mídia’ é objetivo declarado de mais de um blogueiro.
Alternativas à polarização
De minha parte, não estou entre os que querem ver a ‘grande mídia’ destruída – aliás, acho essa posição de uma irresponsabilidade sem tamanho. Não apenas por uma questão de seguridade socioeconômica que diz respeito a todo um setor empregatício, nem porque a blogosfera independente está ainda longe de se viabilizar financeiramente a longo prazo de modo a permitir a produção da notícia em bases que satisfaçam as demandas por volume, continuidade e redes investigativas. Mas porque, como sugeri em artigo publicado neste Observatório (11/8), acredito na viabilidade de uma alternativa intermediária, que reúna, em bases profissionais, o melhor do pensamento crítico da blogosfera aos meios de produção industrial da notícia.
Há, felizmente, indícios de que o cenário de polarização radicalizada entre blogosfera e ‘grande mídia’ tende a arrefecer – certamente não no curto prazo, pois há eleições presidenciais particularmente tensas no meio do caminho, mas numa mirada de médio alcance. Em parte porque, como Alexandre Inagaki aborda com propriedade, a própria internet 2.0 passa por um processo de transformação, com ferramentas como o Posterous e o Tumbir e redes sociais como Facebook e Friendfeed permitindo novas formas de blogagem e com a presença crescente do Twitter – que ao contrário do que muitos imaginam, não se limita a informações em 140 caracteres, constituindo-se em uma rica fonte de links.
Mas, acima de tudo, porque começam a surgir propostas articuladas de jornalismo independente que superem as barreiras do voluntarismo e da não-profissionalização representadas pela blogosfera – a mais impactante delas sendo, até o momento, as integrantes do manifesto (atentem para a reinserção vocabular do que o neoliberalismo pensava ter tornado anacrônico) divulgado pelo grande jornalista que é Leandro Fortes.
O manifesto
Ele afirma, em Manifesto Jornalístico reproduzido neste Observatório, que os próprios profissionais do ofício submetem-se intencionalmente a práticas autodeterminadas por um ambiente no qual ‘vive-se a primazia da má-fé e louva-se a inversão dos valores como condição primordial à sobrevivência dentro do mercado’.
Essa situação vivenciada pelo jornalista, de renúncia a constrangimentos éticos em nome da sobrevivência no mercado (sobrevivência que, como Leandro aponta, poderia se dar de outra forma); de inversão dos fatos e insistência no falso em nome da primazia da má-fé; de um estado de coisas tal que um jornalista justamente consagrado não se furta a chamar de ‘canalha’ seus colegas de profissão – e, o que é pior, estes não se avexam em retrucar, pois parece-lhes faltar moral e brio para tanto.
Distorções históricas
Ao contrário do que muitos críticos virtuais insistem em afirmar de forma um tanto inconsequente – pois, como sói acontecer com alguma frequência nos setores mais jovens da blogosfera, sem conhecimento de causa – a ‘grande imprensa’ nem sempre foi assim. O modus operandi da plutocracia midiática e de suas famiglias, é verdade, pouco mudou através dos tempos, mas o jornalista – este ente profissional hoje exterminado no Brasil por uma decisão infeliz da pior Alta Corte de nossa história – foi, ao menos até o fim dos anos 1980 e nos parcos limites de sua atuação vigiada, um dos principais agentes de resistência político-ideológica, no mais das vezes identificado com a necessidade de redemocratização do país, com as lutas sociais e como questionamento da aliança entre elite econômica e poder político.
Um dos motivos para tal é que um número considerável de jornalistas provinha da intelectualidade (muitos deles egressos do Partido Comunista, então com forte presença nas hostes culturais) em busca de sustento material, repaginados para consumo diário, como sugere o sociólogo Sergio Miceli em seu imprescindível estudo sobre os intelectuais no Brasil na primeira metade do século 20.
Transformações estruturais na imprensa
Poucos setores foram tão afetados pela que a Queda do Muro de Berlim representou – e pelo quadro materialista-ideológico que a sucedeu – quanto o jornalismo nativo, e por razões as mais diversas:
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A perda definitiva da hegemonia no PCB na seara cultural;**
O trauma na esquerda, seguido do vazio pela perda de horizontes político-revolucionários (simbolizados no ‘fim da história’ de Fukuyama);**
O processo de desideologização social (lembrem-se de Cazuza berrando que queria uma ideologia pra viver) e a cultura materialista extrema imposta pelo yuppismo dos anos 1990;**
O enfraquecimento dos sindicatos e órgãos classistas;**
A explosão, via disseminação do ensino superior, de mão-de-obra barata, com reflexos no empobrecimento intelectual da imprensa;**
O barateamento do acesso à informação e a simplificação – ou extinção – de procedimentos diversos ligados à produção industrial da notícia, que o advento da era da telecomunicação digital trouxe em seu bojo;**
A tendência à padronização vertical e horizontal dos meios jornalísticos como consequências do processos de globalização e da concentração do capital de empresas de ‘infotelecomunicação’ via megafusões.O jornalista híbrido
Esses fatores, entre outros, acabaram por gerar o jornalista que ora conhecemos, esse ser híbrido e um tanto esquizofrênico: por um lado, uma maioria de pobres-diabos mal-ajambrados, quase sempre subempregado ou sem emprego algum, ávidos por qualquer ‘frila’ enquanto brandam quixotescamente a bandeira de seu talento e de sua ética alegadamente inflexível.
Ou, em sua versão bem-sucedida, uma espécie de oráculo clarividente, vagando por entre os edifícios do poder e seus escritórios inspirados no design italiano, metidos em seus ternos e tailleurs bem cortados, subservientes ao mercado e às forças políticas mais retrógradas em troca do vil metal, que os aliena e mantém sua suposta condição de ‘formador de opinião’ – expressada, muitas vezes, a partir de uma estrutura verticalizada (em colunas de jornal, no rádio e na TV, não raro os três veículos pertencendo ao mesmo grupo de mídia).
Novos horizontes
Ao invés de erguer como bandeira a destruição da mídia, como tantos o fazem, talvez fosse mais proveitoso buscarmos sair dessa falsa dicotomia representada pelos dois estereótipos de jornalistas acima descritos – propositadamente caricaturais e carregados – e conquistar meios efetivos de criar um novo modelo de jornalismo – que aproveite tanto os talentos jornalísticos abundantes na blogosfera quanto aqueles que aguardam nas filas de emprego das corporações do ramo.
É precisamente em relação a tal horizonte que o manifesto de Leandro Fortes é alçado à sua dimensão maior, na proposição de um novo jornalismo, profissional, remunerado, livre das idiossincrasias e do amadorismo (financeiro) da blogosfera – mas honesto, bem-intencionado, encerrado na predição de que ‘é possível ser jornalista e trabalhar em qualquer lugar sem se submeter ao mau-caratismo. Arriscado, mas possível’.
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Jornalista, cineasta e doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog