Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

As palavras importam

Crédito: iwat1929/Freepik

Qualquer pessoa que fez um curso de Comunicação Social ouviu uma lição fundamental: as palavras que usamos para construir nossas mensagens importam. Muitas vezes, são um dos recursos a nossa disposição para nos comunicar, para expressar ideias, pensamentos, fatos, opiniões. Elas estruturam as mensagens que queremos transmitir e, com outros signos — como imagens e sons —, completam a narrativa cotidiana da vida, quer seja para um público familiar e restrito, quer seja para grandes audiências e multidões.

Começamos hoje por esse aspecto até um tanto corriqueiro, relembrando um ponto óbvio: as palavras carregam sentidos que são construídos por uma coletividade de pessoas, de forma relacional e política. Essa obviedade serve para ressaltar o aspecto de que, apesar de serem expressas de modo individual, as palavras só têm sentido quando as consideramos coletivamente. Mais ainda: qualquer comunicação só se estabelece porque aquele signo inicial emitido — expresso na palavra — foi decodificado por um receptor que teria, minimamente, os recursos necessários para considerar seus sentidos. Isso se torna mais evidente quando nos vemos, por exemplo, numa situação em que temos de nos comunicar com alguém que é falante de outra língua. Somos ambos seres humanos, mas, se não compartilhamos os sentidos dos signos que iremos usar, é muito provável que não consigamos nos fazer entender e, com isso, as mensagens do outro não fará qualquer sentido para nós.

É por isso que a ponte que carrega essa conexão deve ser construída na comunicação profissional com o mínimo de zelo. Um jornalismo que queira ter excelência no seu papel de mediação social, e mesmo de salvaguarda de uma sociedade mais justa e democrática, precisa saber nomear os fenômenos sobre os quais informa. E, para questões de gênero e raça, especificamente, isso é fundamental. Um jornalismo que queira se colocar em defesa dos direitos sociais e do combate a violências contra mulheres, negros, indígenas e outros grupos historicamente vulnerabilizados pode, sim, demonstrar isso na escolha das palavras.

Um exemplo recente disso ocorreu nas Olimpíadas de Tóquio. Durante o jogo de futebol feminino entre Japão e Canadá, a narradora da SPORTV Natalia Lara (sim, uma mulher narrando jogos de futebol) usou um pronome neutro para informar a substituição de Quinn, atleta trans não binária da seleção canadense, pela colega Rose. A frase “elu está saindo” repercutiu nas redes e demonstra um sinal importante daquela transmissão em ressaltar o respeito ao debate sobre identidade de gênero. Lamentável foi a repercussão de outros veículos de comunicação que, ao tratarem do fato, não só fizeram chacota, como chegaram a afirmar que a linguagem neutra, que teria “contaminado” as universidades e as empresas, agora “chegava aos esportes”. O livro Linguagem, gênero e sexualidade: clássicos traduzidos (Parábola Editorial, 2010), organizado por Ana Cristina Ostermann e Beatriz Fontana, traz um ensinamento muito pertinente: estamos todos implicados como sujeitos sociopolíticos que somos e precisamos refletir sobre esses temas, a fim de produzir maior igualdade, valorizando também as diferenças.

Posturas como as relatadas acima servem para demonstrar que, ao nomear uma situação, revelamos as posições políticas e sociais que ocupamos como falantes. Uma comunicação que se pretenda integrante de um sistema que vele pelos direitos e liberdades individuais deve prezar pelo cuidado com essa nomeação. É preciso também questionar a quem serve a manutenção de uma estrutura linguística excludente em suas diferentes dimensões.

Outro exemplo nesse sentido são as coberturas sobre crimes de feminicídio. Até poucos anos atrás, o termo sequer aparecia nas matérias dos diferentes veículos. Rayani Mariano dos Santos e Taissa Gracik Tomé, em recente pesquisa sobre essa abordagem no jornalismo local, trazem o triste fato de que, quando expressavam as motivações dos acusados, os jornalistas destacavam a honra, a passionalidade que “legitimaria” o destempero e a violência. Além de não nomear, os jornalistas paravam neste ponto, sem um aprofundamento na discussão dos termos, das palavras utilizadas. As matérias sequer aprofundavam as informações apresentadas no lead, aquele primeiro parágrafo que deveria responder às clássicas perguntas: quem, quando, como, onde, por quê. Seria por falta de tempo, correria do fechamento ou falta de informação?

Um jornalismo que tenha como objetivo ser de qualidade e, repetimos, que esteja ao lado das liberdades e de uma sociedade equitativa, precisa ir além. Precisa usar o pronome que não limita os corpos apenas às caixinhas binárias de “homem” e “mulher”, precisa usar a palavra “feminicídio” para expressar a violência que ceifa vidas de mulheres pelo simples fato de o serem, precisa usar as mesmas palavras pra perguntar “por quê?”. Por que a cada 15 minutos uma mulher sofre uma violência no país? Por que o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans? Por que as mulheres têm medo de andar sozinhas nas ruas? Por que o risco de mulheres negras serem assassinadas é duas vezes maior do que de mulheres brancas? Por que os companheiros não sabem ouvir “não”? Por que os negros compõem massivamente a população carcerária no país? Por que as mulheres negras são a maior parcela das mães solo no Brasil?
Um jornalismo desatento às palavras e aos sentidos que reverberam ou silenciam peca, no mínimo, por imprecisão, quiçá, por omissão.

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Lucy Oliveira é jornalista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem estágio de pós-doutorado pela FAPESP no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e, atualmente, desenvolve pesquisa e trabalhos nas áreas de mídia, política, discurso, gênero e representatividade. É vice-coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica). Instagram: @lucy_olivr

Viviane Gonçalves Freitas é jornalista, doutora em Ciência Política (UnB), com residência pós-doutoral em Ciência Política (UFMG). É professora no curso de Jornalismo e na especialização Comunicação, Diversidade e Inclusão nas Organizações, ambos da PUC Minas. Pesquisadora associada à Rede de Pesquisas em Feminismos e Política e ao Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (UFMG). É coordenadora do GT Mídia, Gênero e Raça da Compolítica. Tem pesquisas e publicações nas áreas de mídia, política, feminismos e raça. Instagram: @vivianegf14