Faleceu novamente (sic), neste último fim de semana da graça de outubro de 2015, o bom e velho jornalismo. O cadáver, a um só tempo insepulto e moribundo, deve-se desta vez a parte da matéria de capa da revista Época, editada pelas Organizações Globo.
Sim, refiro-me ao texto que levanta suspeitas sobre movimentações financeiras do ex-presidente Lula, nas quais ele teria recebido cerca de R$ 27 milhões por suas palestras[1]. Mas não, não a menciono para defendê-lo ou querendo inocentá-lo de antemão de quaisquer acusações. O ex-presidente não é inimputável, não está acima das leis. É saudável e é legítimo que se torne alvo de duras investigações se suspeitas há contra quaisquer de suas atividades. Minha referência ao mais recente passamento do jornalismo visa, apenas e tão somente, expor a doença que o matou pela enésima vez. Vejamos.
Na reportagem que lhe é capa, Época repete agora no fim de outubro notícia já dada em agosto por Veja, baseada no mesmo documento sub-repticiamente vazado do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Fazenda. Nele, fica-se sabendo que a empresa de palestras de Lula teria faturado os tais R$ 27 milhões, o que levou ainda colunistas do Globo a redigirem em seus blogs, de elevado acesso virtual, textos finamente indignados frente a tamanha soma de dinheiro ganha por Lula – a quem um dos blogueiros adjetivou de “amoral”.
A ideia, explícita ou disfarçada, em todos os casos é a de que essa montanha de reais só poderia ser suspeita. Afinal, façamos a conta. Considerando que, segundo a própria empresa de Lula, o ex-presidente fez 71 palestras pagas desde que deixou a presidência, as somas vazadas pelo CARF COAF significariam cerca de R$ 380 mil por evento. Um preço caro por palestra, sem dúvida. Contudo, Época abdicou a tal ponto de fazer jornalismo, que se absteve até mesmo de fazer buscas em seu próprio arquivo, em suas próprias reportagens passadas.
Em 24 de abril de 2004, em reportagem intitulada “Fernando Henrique S/A”, a própria revista noticiava que “O ex-professor, senador, ministro e presidente da República Fernando Henrique Cardoso agora é uma celebridade. Desde que deixou o Palácio do Planalto, no ano passado, FHC já faturou cerca de R$ 3 milhões dando palestras para empresários e intelectuais, no Brasil e no exterior”. No entanto, o tom da reportagem da Época à época não era de denúncia ou suspeita, pelo contrário. Trazia até mesmo uma amena entrevista com FHC, cujo título destacava uma das respostas do tucano sobre a vida após a presidência: “É bom ter uma vida comum”.
As palestras de FHC
Note-se que, naquele momento, fazia apenas 15 meses que FHC havia deixado o Palácio do Planalto. E tenha em mente ainda que aquela soma por ele recebida até abril de 2004 equivale a cerca de R$ 5.888.467,50 em valores de hoje. Isso significa dizer que, em média, FHC então faturara por mês com palestras R$ 392 mil em valores corrigidos. Ou seja, apenas 15,7% a menos do que Lula e seus R$ 465 mil por mês, em média, entre janeiro de 2011 e outubro de 2015. E olhe que a popularidade de Lula ao deixar o mandato era muito superior à de FHC ao deixar o mandato – o que provavelmente já justificaria algum sobre preço no famigerado mercado de palestras. Seria FHC, para Época ou para os blogueiros do Globo, também um “amoral”?
É claro, não se sabe o quanto FHC conseguiu ganhar depois de 2004 com suas palestras, para identificarmos se manteve a mesma média. Se os jornalistas da Época não se deram ao trabalho nem de ir buscar essa sua reportagem de 2004 em seu próprio arquivo e de aplicar a devida correção monetária (processo total que me tomou meia hora), seria devaneio esperar que fizessem um levantamento atualizado das palestras de FHC afim de colocar as de Lula em perspectiva comparada. Sonhando um pouco mais, uma reportagem interessante também poderia fazer uma comparação com ex-mandatários de outros países, onde também é comum que ex-presidentes, de todos partidos diversos, fiquem milionários fazendo palestras após seus mandatos terminarem – quando não consultorias.
Desnecessário dizer que nenhuma dessas informações, por óbvio, é ou seria capaz, por si só, de inocentar Lula. A ausência delas condena, contudo, a revista pelo atentado à vida do bom jornalismo. No Brasil, a escandalização e o manchetismo baratos para vender caro, o pseudo-jornalismo pseudo-investigativo, parece que venceram faz tempo o mínimo jornalismo jornalístico. E levaram a soçobrar, de roldão, a ética e a decência em nome das quais pseudo-jornalistas adoram arvorar-se como representantes.
Não sou do metiê, mas me parece que Época e alguns dos seus andam precisando de umas palestras. Não de Lula, claro – de quem a InfoGlobo, diga-se de passagem, foi uma das contratantes. Mas palestras de jornalismo. Eu pagaria para assistir.
Fabricio Vasselai PhD em Ciência Política na Universidade de São Paulo, foi Pesquisador-Visitante das Universidades de Michigan, EUA, e Åbo Akadmi, Finlândia. Não entende nada de jornalismo, não votou em Dilma e está entre os 70% que acham seu governo péssimo ou ruim.
[1] A matéria na verdade coloca em destaque o número de R$ 52,3 milhões, mas foram R$ 27 milhões que entraram e R$ 25,3 milhões que saíram. A revista optou por somar as entradas na conta da empresa de Lula com as saídas, para chegar ao montante final que Lula teria “movimentado” suspeitamente. Creio desnecessário justificar porque tal opção, para fins de destaque ou manchete, resulta absurda.