Texto publicado originalmente pelo objETHOS.
O jornalismo é uma atividade iminentemente coletiva e agora também colaborativa por conta do tsunami de inovações tecnológicas surgidas nos últimos 30 anos. Mas a maior parte dos resultados do processamento digital de notícias é perdido devido a dois tipos de distorções existentes dentro das redações.
A primeira delas é causada pelo sistema industrial de produção em grandes e médias empresas jornalísticas onde as redações acabaram se transformando em linhas de montagem de notícias. A outra distorção, surgida já na era do jornalismo digital, é o enorme desperdício de dados e informações provocada pela ausência de políticas de produção de conhecimento nas redações.
O sistema industrial no jornalismo está em crise, mas as rotinas, normas e a cultura que ele gerou ainda condicionam o trabalho da maioria dos profissionais da atividade. No sistema linha de montagem, a produção de notícias segue a lógica mercantil, ou seja, a notícia serve para vender jornal e atrair anúncios. Assim, tudo o que não está alinhado com este objetivo é descartável e vira lixo.
O jornalismo praticado na internet ainda sofre os efeitos da herança analógica no processamento da notícia, mas a tendência mercantil perde espaço diante da necessidade, editorial e financeira, de buscar uma relação mais próxima com leitores, telespectadores, ouvintes e internautas. Um maior engajamento com o público valoriza o chamado jornalismo de soluções onde a preocupação com os dilemas do público é mais importante do que a atração de anunciantes.
Ao oferecer insumos informativos para que as pessoas encontrem opções inovadoras para seus problemas, o jornalismo de soluções recorre às técnicas de produção de conhecimento, o que representa uma ruptura com o modo tradicional de processar notícias. Atualmente, as redações vivem o conflito entre uma produção informativa socialmente relevante e a manutenção do sistema industrial voltando para a venda da notícia como commodity.
Uma das possibilidades em estudo, em universidades norte-americanas e em países nórdicos da Europa é a transformação das redações jornalísticas da era digital em Comunidades de Prática (CPs), uma ferramenta organizacional, surgida no final do século XX, e foi desenvolvida para a produção de conhecimento.
Os dilemas digitais do jornalismo online
As CPs baseiam-se no princípio de que o conhecimento e a inovação resultam do aprendizado desenvolvido de forma coletiva e em situações específicas. Atualmente o jornalismo enfrenta inúmeros dilemas como: adaptar-se a uma nova forma de produzir informações, a uma nova função da notícia e a novos artefatos eletrônicos que estão alterando radicalmente as normas, rotinas e valores tradicionais da profissão.
Resumindo, os jornalistas estão sendo obrigados a aprender a usar um grande número de sofisticados equipamentos de edição e comunicação, bem como desenvolver novos comportamentos para conviver com um público cada vez mais proativo. Não se trata apenas de decorar manuais e tutoriais, mas principalmente de adaptar hardware e software às condições específicas de cada publicação, a parte mais difícil e geralmente esquecida porque as empresas querem soluções tipo plug and play (ligou, funcionou) .
Na era digital, a facilidade de publicação de material informativo gerou uma grande oferta jornalística, onde a sobrevivência depende da diversificação de linhas editoriais, o que exige pesquisa, estudo, aprendizado e conhecimentos.
As Comunidades de Prática, segundo pesquisadores como a norte-americana Amy Schmitz Weiss e o espanhol David Domingo são o instrumento ideal para preencher a lacuna de conhecimento gerada pelo imediatismo e tecnicismo na migração do jornalismo para o ambiente digital. As CPs permitem que repórteres, editores, designers e programadores troquem informações sobre a melhor forma de customizar as novas tecnologias à realidade de cada redação e às especificidades do público alvo da publicação.
Experiências feitas no jornal online holandês De Correspondent revelaram também que as CPs funcionam como instrumento para recolher sobras de informações não usadas em notícias e reportagens para inseri-las em bancos de dados, onde podem dar origem a novos conteúdos jornalísticos. A direção do jornal admite que quase 20% das reportagens publicadas atualmente surgiram a partir de dados descartados de outras reportagens.
O projeto GPSJOR, desenvolvido conjuntamente pela UFSC e pelo IELUSC, de Joinville, incluiu a formação de uma Comunidade de Prática entre os instrumentos usados para desenvolver coletivamente conhecimentos sobre governança em projetos jornalísticos na era digital. Trata-se de um tema ainda pouco estudado onde os pesquisadores recorrem à produção coletiva de conhecimentos, a partir de experiências individuais.
A transformação das redações em CPs ainda é um processo muito novo, mas ela se baseia numa evidência já consolidada: a de que o diferencial futuro do jornalismo depende mais da produção de conhecimentos inovadores do que das regras empresariais que regem o funcionamento das linhas de montagem de notícias.
Carlos Castilho é jornalista com doutorado em mídia e conhecimento, pesquisador associado do objETHOS e publica em seu blog no Medium.
___
Para os interessados em aprofundar conhecimentos sobre Comunidades de Prática:
– Innovation processes in online newsrooms as act-networks and communities of practice. Artigo por Amy Schmitz Weiss e David Domingo, publicado em 2010 no periódico New Media Society. DOI: 10.1177/146144809360400
– Interactivity in the daily routines of online newsrooms. Dealing with an uncomfortable myth. Artigo de David Doming, publicado, em 2008, no Journal of Computer-mediated Communication. DOI 10.1111/j.1083-6101.2008.00415.x
– Communities of practice, Learning, Meaning and Identity. Livro de Etienne Wenger, considerado o criador das Comunidades de Prática voltadas para o aprendizado e produção de conhecimento. Publicado em 1998, pela Cambridge University Press.
– Communities of practice, a brief introduction. Texto publicado em 2009 por Etienne Wenger e disponível em http://neillthew.typepad.com/files/communities-of-practice.pdf