O que aconteceu no Rio de Janeiro é, sem dúvida alguma, uma catástrofe. Ruas, casas, prédios, igrejas, praças, lojas… tudo debaixo de lama. Mais de 600 pessoas morreram e uma quantidade certamente considerável ainda aguarda para se juntar a essa estatística assim que seus corpos forem localizados debaixo do barro. A julgar pelas imagens da TV, Teresópolis, Petrópolis, Nova Friburgo, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto precisarão de muito tempo para se reerguer. São Luís do Paraitinga sofreu com situação semelhante ano passado e ainda está em reconstrução.
Nunca passei por nada como isso. O mais próximo que estive de uma enchente foi nos anos 1990, quando morava em Guarulhos e observava da varanda do apartamento o rio/canteiro central da avenida transbordar e atingir as casas construídas em sua várzea. Nessa época meu pai trabalhava na região da Luz, em São Paulo, e não foram poucas as vezes em que ele precisou dormir no trabalho por não conseguir voltar para casa. Hoje, morando em Campinas, só vejo pela TV. A Grande São Paulo, São Luiz do Paraitinga, Angra dos Reis, Rio Grande do Norte, região serrana do Rio… O local muda, mas a notícia não.
Apresentadores e repórteres, em nome da população, cobram das autoridades públicas explicações, ações e soluções para que o problema não torne a ocorrer. Falam do desmatamento de encostas e matas ciliares, da tolerância com construções em áreas irregulares, da falta de zoneamento e planejamento urbano, da falta de infraestrutura de saneamento e esgoto, da falta de aviso diante da catástrofe eminente… Da falta de tudo. Sempre responsabilidade exclusiva do poder público e, às vezes, da consciência dos pobres coitados que jogaram lixo nas ruas ou insistiram em construir suas casas em encostas.
Respeito às peculiaridades locais
Diferentemente daqui, as TV locais norte-americanas produzem conteúdo. Infelizmente, não possuo dados gerais em ‘horas de programação’, mas comparando rapidamente a programação do último dia 14 das emissoras WoodTV 8 (escolhida aleatoriamente. É ligada à NBC e com cobertura sobre a região oeste do estado de Michigan) e EPTV (uma das maiores afiliadas da Rede Globo, com cobertura regional sobre boa parte de São Paulo e do Sul de Minas Gerais), temos os seguintes números:
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EPTV: Bom Dia Cidade (jornal, 15 min.); Jornal da EPTV (jornal, 30 min.); EPTV Esporte (esporte, 15 min.) e Jornal Regional (jornal, 25 min.). Total: 85 minutos. Equivalente a 6% da programação.**
WoodTV 8.1: News 8 Daybreak Early Edition (jornal; 60min.); News 8 Daybreak (jornal; 60 min.); eightWest (natureza; 60 min.); News 8 @ Noon (jornal; 60min.); News 8 @ Five (jornal; 30 min.); News 8 @ 5:30 (jornal, 30 min.); News 8 @ Six (jornal, 30 min.) e News 8 @ Eleven (jornal; 35 min.). Total: 365 minutos. Equivalente a 25% da programação.Pode-se argumentar que eu não fui justo nessa comparação. A WoodTV 8 é digital há mais tempo que a EPTV e opera em três canais diferentes (8.1, 8.2, e 8.3), o que permite uma grade consideravelmente maior. No entanto, somando o tempo de grade destes três canais (sem considerar possíveis conteúdos locais no 8.2 e no 8.3), o conteúdo local ainda é maior que o da EPTV, aproximadamente 8,5% desse total.
Essa discrepância absurda entre o cenário americano e o brasileiro mostra o interesse das emissoras em permitir o crescimento regional de suas afiliadas, mas não só. Representa também o nível de respeito às peculiaridades locais.
Previsão do tempo
A previsão do tempo, algo fundamental para ajudar o cidadão a planejar seu dia, tanto em situações corriqueiras (com ou sem guarda-chuva?) quanto de excepcionalidade (enchente ou não?), é certamente afetada por essa divisão de grade.
O vídeo do link abaixo foi apresentado durante um jornal dentro da programação local da WoodTV 8, ou seja, comeu tempo de grade. Mesmo separando quase cinco minutos para que fosse apresentado o mapa da região com seus diferentes graus de aproximação, imagens produzidas por radares doppler etc., ainda lhe restavam outros 360 para o restante do noticiário: http://www.youtube.com/watch?v=6e6fHtnojqM&feature=player_embedded
Já esse outro vídeo foi produzido para o site da EPTV, ou seja, não comeu o curto tempo de grade. Se esperaria, portanto, uma previsão bem feita, com mapas, radares, zoom e conteúdo separado para cada região da cobertura da emissora, no entanto o resultado é esse: http://eptv.globo.com/emc/VID,0,1,28858;1,previsao+do+tempo.aspx
TV tem sua parcela de culpa
As emissoras de rádio e televisão se esquecem que são, antes de tudo, concessões públicas. Que acima de seus estatutos, códigos e regulamentos internos, devem seguir as orientações presentes na Constituição Federal. Dela, destaco o seguinte artigo:
Título VIII – Cap. V – Art. 221:
A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Da mesma maneira que Campinas é obrigada a assistir a quase 22 horas e meia de programação elaborada no eixo Rio-São Paulo, certamente também são as cidades da região serrana do Rio. Uma previsão do tempo bem feita e devidamente regionalizada ajudaria a prevenir as mais de 600 mortes nas chuvas da última semana.
O poder público, sem sombra de dúvida, tem responsabilidade direta sobre os cidadãos, que pagam impostos e esperam que estes sejam revertidos em melhorias na infraestrutura básica de saneamento e na aquisição de radares e computadores para a previsão do tempo, como os que foram adquiridos recentemente pelo INPE/CPTEC, capazes de realizar previsões mais precisas. No entanto, de nada adianta fazer uma previsão meteorológica fantástica se ninguém consegue ficar sabendo dela.
A maioria dos brasileiros tem como fonte principal de informação os telejornais noturnos, principalmente o Jornal Nacional, e, infelizmente, qualquer tipo de detalhamento regional a respeito da previsão do tempo só acontece após uma tragédia como esta. Enquanto as emissoras de televisão, capazes de alertar mais pessoas do que a Defesa Civil, se limitarem ao ‘Pode chover forte na região X’, também terão sua parcela de culpa.
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Produtor, Campinas, SP