A imersão conservadora da imprensa brasileira produziu, na última semana, um subtexto digno de figurar como peça pobre do realismo mágico. Não pela magnitude estética, mas pelo mergulho no absurdo. Sem a grandiosidade estilística de um Gabriel García Márquez, a Macondo do jornalismo brasileiro é uma ficção pobre, travestida de discurso objetivo. Não se propõe a contar a história de qualquer cidade mítica, mas a ocultar os interesses de Arcádios Buendía que impõem seus desmandos há mais de três séculos de solidão.
Enquanto 600 delegados de 70 países participavam, em Valencia (Espanha) entre 4 e 8 de dezembro, do Fórum Mundial de Reforma Agrária (FMRA), os jornais brasileiros preferiram ignorar o evento ou a ele dedicar apenas breves registros anódinos. Fingiram não ver o ato inaugural de uma nova articulação contra-hegemônica. Pela lógica editorial predominante, os debates em plenárias e as oficinas sobre mazelas e limites do modelo agrário hegemônico não são dignos de figurar em folhas que só avalizam as chamadas ‘reformas agrárias de mercado’.
Do ponto de vista jornalístico, o silêncio sobre o Fórum não encontra qualquer justificativa que não esbarre nos surrados critérios classistas do que deve ser notícia. Afinal, lá estavam Miguel Rosseto, ministro do Desenvolvimento Agrário, e representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrárias (Incra) – duas entidades governamentais responsáveis pela promoção de uma nova ordem fundiária.
Relevância política doméstica era o que não faltava. A grande ausente, tanto nas editorias de política quanto nas de economia, era disposição para confrontar reflexões de matizes distintas daquilo que é reiterado dia após dia, na batida monocórdica do pensamento único.
Como destacou o semanário Brasil de Fato, reproduzindo avaliação do reitor da Universidade Politécnica de Valencia (UPV), Javier Sanz ‘pela primeira vez na história, representantes de movimentos sociais, organizações não-governamentais, governos e especialistas acadêmicos reúnem-se em um encontro dessa amplitude para debater os desafios que envolvem as lutas por reforma agrária em todo o mundo’.
Boi no lugar do homem
Do ponto de vista político, o camponês reafirma sua existência como sujeito de direito e, ao denunciar o modelo de monocultura voltado à exportação, toca em questão sensível para veículos que não cansam de incensar as virtudes do latifúndio redimido: o agronegócio, que estaria alavancando indicadores macroeconômicos, seria, na verdade, expressão do atraso imposto pelos centros hegemônicos aos países periféricos.
Reiteramos, tal como o fizemos na edição nº 305 deste Observatório [veja remissão abaixo], que O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S. Paulo e Gazeta Mercantil, entre outros, existem como isolamento acústico para demandas que venham a contrariar interesses secularmente consolidados.
Como conseqüências da perda de soberania nacional face às imposições dos organismos multilaterais de crédito, teríamos a privatização de recursos naturais, a degradação ambiental, a concentração de propriedades e a extinção da agricultura camponesa e familiar que privilegia o mercado interno.
De acordo com as organizações presentes em Valencia, o resgate soberano exigiria, ainda, que a alimentação e agricultura saíssem das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e fossem tratadas como direitos de todos. O documento final não deixa dúvidas de que estamos em meio a um processo contra-hegemônico de grande vulto.
A inter-relação entre os interesses campesinos e os demais setores da sociedade demonstra a superação corporativa que marca as fases embrionárias dos movimentos sociais. Vejamos um trecho publicado na edição de 9/12, do portal Carta Maior (http://agenciacartamaior.uol.com.br/):
‘Reafirmar o acesso à terra como direito de toda a humanidade e retirar as questões relativas à alimentação e à agricultura das discussões travadas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e dos acordos comerciais bi e multilaterais. Esta foi a principal resolução política definida na declaração final do 1º Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária, que terminou nesta quarta-feira (8) em Valencia. Após quatro dias de intensa discussão, com a participação de representantes de organizações de mais de 70 países, a mais importante contribuição desse FMRA foi apontar para a unificação de uma agenda de mobilizações que coloque a luta pela reforma agrária como parte integrante da luta estrutural contra as políticas neoliberais que contribuem para aumentar a miséria dos trabalhadores, seja no campo ou na cidade, em todo o mundo’.
A observação do representante dos camponeses da Catalunha, Xávi Caetán, é importante demais para não ser registrada nesse pequeno artigo:
‘Os governantes e a elite européia devem mudar sua postura. Não adianta ficarmos aqui discutindo a soberania alimentar nos países menos desenvolvidos enquanto nossas grandes empresas continuam adquirindo gigantescos pedaços de terra no Sul apenas para transformá-los em pastos’.
Ajuda mútua
Mas não é esta uma das denúncias mais graves feitas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST)? A de que o processo de desnacionalização no campo é crescente? Imaginem que pauta isso não daria se o compromisso da imprensa brasileira fosse com uma sociedade efetivamente republicana?
E como ignorar o impacto internacional das declarações do delegado palestino, Jadeh Jamal, quando afirma que camponeses da Palestina, Iraque e Afeganistão estão morrendo de fome por conta da política de força exercida por Estados Unidos e Israel? Como deixar de refletir sobre mais essa constatação feita pela mesma liderança?
‘Atualmente, por falta de alternativas de produção dignas, os camponeses do Afeganistão são responsáveis pela produção de 80% da heroína que é vendida na Europa. Não podemos ter medo de, ao lutar pela reforma agrária, denunciarmos nossos verdadeiros inimigos’.
Como vemos, a questão agrária é de enorme centralidade se pensamos em democracia, justiça social e Estado de Direito. E é aí que reside o pecado capital da nossa grande imprensa: a falta de compromisso com qualquer um dos três itens. Assim, quando publica estudo da Unicef apontando a existência de 27 milhões de crianças vivendo abaixo da linha de pobreza e não faz qualquer menção à concentração fundiária, mais despolitiza do que informa.
Impossível pensar em atuação política no interior da estrutura midiática visando à exploração de contradições e ocupação de espaço. Esse erro antigo parece ter sido abandonado pelos movimentos sociais. A blindagem é por demais bem-feita para que se possa escapar da filtragem editorial. Afinal desde quando aquário existe para assegurar a liberdade de peixe?
A importância de contar com veículos próprios para a luta ideológica tem levado várias organizações a repensar a questão de estabelecer uma ordem informativa horizontalizada, capaz de transpor suas demandas específicas e atingir um público amplo. A mobilização social requer inventividade nas formas de comunicação política. E, por certo, no interior da própria luta a práxis encontrará os melhores caminhos.
Importante destacar que este artigo não seria escrito não fossem informações fornecidas pelos sites do MST, da agência Carta Maior e do semanário Brasil de Fato. O Fórum Mundial de Reforma Agrária não merece ser notícia num país em que coexistem grandes extensões de terra nas mãos uma minoria e pouquíssimas famílias concentrando grandes extensões do campo comunicativo. Mantidas as especificidades, um latifúndio ajuda ao outro.
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Professor-titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro