Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Atire antes, pergunte depois

Há algum tempo, mais precisamente na edição de 19/3/2003, definimos Veja como ‘publicação que negligencia apuração factual para reiterar uma petição de alinhamento incondicional’ [ver ‘O sangue seco de Veja‘]. Indagávamos: um veículo que ‘editorializa reportagens, oculta fatos, distorce dados, sempre na defesa canina dos donos do poder podia ser chamado de produto jornalístico?’.

Passados pouco mais de três anos, a revista não só mantém as características ressaltadas como consegue aprofundá-las sem qualquer constrangimento. Veja não tem limites. Para os senhores da Abril, pirâmide invertida não é técnica de redação, mas posicionamento editorial. O vértice, lado mais fino, menos relevante, não é fim de texto. É o local destinado à ética, ao compromisso com a informação conseqüente.

Nesta semana, a revista [edição nº 1956, de 17/5/2006] publicou reportagem afirmando que o presidente Lula e outras lideranças petistas teriam contas bancárias em paraísos fiscais. Atribuindo a informação ao banqueiro Daniel Dantas, a reportagem, assinada por Márcio Aith, é um primor de paradoxos lógicos em parágrafos seguidos. Reforça a impressão de que a atual crise, com os préstimos de parcela expressiva da mídia, só acabará com a derrota ou o impeachment de Lula. E para isso todos os recursos são válidos. Até publicar denúncias sem o mínimo de apuração.

Mesmo admitindo não saber se é autêntica, a revista não hesita em publicar uma lista com supostos depósitos do presidente e de outros políticos petistas. Veja teima em ignorar fronteiras entre fatos e versões inconsistentes. O encadeamento de alguns trechos da matéria denota pouco apreço pela inteligência do leitor. O que importa é continuar tentando colonizar o imaginário de frações da classe média e municiar os aliados políticos de sempre. O multicolorido pasquim da direita sequer se preocupa com o acabamento do produto. O fundamental é colocar o bloco na rua.

Detalhe secundário

Há linhas que valem mais do que mil editoriais. São as que revelam os objetivos de um texto e o descompromisso com a informação divulgada. Não comportam normas prescritas em códigos de ética, seguem tão-somente a lógica da promoção de eventos. Algo do tipo ‘domingo é dia de botar fogo no circo, espetacularizar a crise e colher o frutos ao longo da semana’. Lógico, para tal empreitada contam com o apoio logístico de outros meios de comunicação, além da acolhida ‘bem-humorada’ de alguns jornalistas-blogueiros.

Vejamos o parágrafo abaixo. Nada poderia ser mais auto-explicativo. Observemos como os fins justificam os meios para o panfleto dos Civita.

‘Se pelo menos uma parte desse material for verdadeira, o governo Lula estará a caminho da desintegração. Isso, é claro, se o Brasil ainda mantiver as aspirações a se tornar um país sério. Se o material for fruto de falsificação, Dantas vai afundar-se ainda mais na confusão policial na qual se meteu desde que contratou a Kroll para montar dossiês de seus adversários dentro do governo. Em entrevista ao colunista Diogo Mainardi, o banqueiro dá uma idéia do que tem em mãos. Seu arsenal é maior’.

É assim, sem subterfúgios, que a revista de maior circulação nacional se jacta de produzir reportagens de qualidade. Pela lógica do baronato, se pelo menos uma parte dessa matéria for verdadeira, Veja terá ajudado o Brasil a se tornar um país sério. Caso contrário, a fonte é que terá de arcar com as conseqüências, porque a Abril não apura o que merece chamada de capa.

É o equivalente jornalístico da máxima policial ‘atire antes, pergunte depois’. A vítima, a verdade factual, é detalhe secundário quando se trata de ação entre amigos. Não está em discussão se os Civita e Dantas se merecem, mas se uma sociedade que almeja ser democrática pode ficar à mercê das falcatruas de ambos.

O móbil da matéria

Os trechos reproduzidos mostram como se dão os arranjos no andar de cima. Os critérios de publicação e os cálculos para divulgação de material fraudulento demonstram o lugar da revista na luta político-partidária. A publicação faz análise de conjuntura à luz de seu engajamento. Se fosse possível um entretitulo para o que se segue, certamente um ‘Às favas todos os escrúpulos’ não trairia o conteúdo.

‘Por todos os meios legais, Veja tentou confirmar a veracidade do material entregue por Manzano. Submetido a uma perícia contratada pela revista, o material apresentou inúmeras inconsistências, mas nenhuma suficientemente forte para eliminar completamente a possibilidade de os papéis conterem dados verídicos. Diante de tal indefinição, e tendo em vista que o nome de Dantas voltou a aparecer na CPI, Veja decidiu quebrar o acordo feito com o banqueiro do Opportunity e Manzano. O compromisso inicial era preservar o nome de ambos, caso se pudesse comprovar a veracidade das contas. Nada mais justo: a revelação seria um serviço prestado ao Brasil, uma vez que levaria grandes nomes da República a ter de explicar a origem do dinheiro depositado no exterior. Revelar agora que Dantas – e, por tabela, Manzano – está por trás de uma lista em que o presidente Lula aparece como dono de uma conta num paraíso fiscal viabilizará, acredita Veja, que investigações oficiais sejam abertas’.

Certamente não fugiu ao leitor o móbil da matéria, segundo palavras extraídas do próprio texto. O governo Lula estará a caminho da desintegração por um serviço prestado. Exagerará o presidente ao afirmar que não pode considerar isso jornalismo? Segundo ele ‘o jornalista que escreve uma matéria daquela poderia dizer que é bandido, mau-caráter, malfeitor, mentiroso’.

Matéria sem fundos

O diretor de redação, Eurípides Alcântara, distribuiu nota em resposta às críticas de Lula. Nela, afirma:

‘O presidente Lula não leu e não gostou do que não leu. Ainda assim reagiu intempestivamente à reportagem de Veja. Insultou jornalistas e a publicação, uma atitude imprópria para um presidente da República. É imperioso ler antes de criticar’.

Tem razão. Mas talvez fosse interessante o editor ouvir o que sua fonte, o banqueiro Daniel Dantas, afirmou ao jornal Folha de S. Paulo:

‘A minha sensação é de que havia, sim, corrupção no governo, mas os dados das contas não tinham nada a ver com a disputa societária [na Brasil Telecom]. Na verdade não tenho a menor idéia se existem essas contas ou não. Veja mente quando diz que tinha um compromisso comigo para preservar meu nome como fonte, caso essas contas fossem verdadeiras. Isso nunca existiu’.

Em resumo, o Opportunity afirma que a revista emitiu uma ‘matéria sem fundos’. Mais imperioso ainda, repetimos, seria averiguar antes de publicar. Concluindo, o jornalista da Abril é categórico:

Veja reafirma seu compromisso com os leitores e com o Brasil de prosseguir em sua tarefa de fiscalizar o poder em todas as suas esferas, a fim de impedir que ‘sofisticadas organizações criminosas’, para usar das palavras do procurador-geral da República, continuem a corroer a democracia brasileira’.

Quem vai apurar?

Interessante. Mas se a mídia fiscalizasse mídia, talvez outras sofisticadas organizações jornalísticas operassem com maior transparência. Há pouco tempo, Renato Rovai publicou na revista Fórum:

‘Os laços entre os Civita e a família tucano-pefelê são sanguíneos e os interesses comerciais comuns. O atual vice-presidente de Finanças do grupo Abril foi presidente da Caixa Econômica Federal durante o governo FHC. Emílio Carrazai ficou na CEF até 2002. De lá saiu para ajudar a Abril a enfrentar a campanha presidencial vindoura. Deixou a presidência de um banco público para dirigir o caixa de uma revista de banca.

‘Há outros irmãos de sangue tucano-pefelê na turma dos Civita. Claudia Costin, secretária de Cultura do governo Alckmin até maio deste ano, é a vice-presidente da Fundação Victor Civita. Costin foi também ministra de Administração Federal e Reforma do Estado nos tempos FHC. Lembram-se da reforma de Estado na era FHC?’

Se pelo menos parte do texto acima for verdadeiro, algo de muito podre estará a caminho da desintegração no imaginário da classe média. E não se tratará de um governo. Quem vai apurar?

******

Professor de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro