Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Augusto Matraga e a grande imprensa

Melhor que fazer um balanço sobre o comportamento da imprensa em 2008, um exercício projetivo sobre o próximo ano pode ser mais proveitoso quando nosso objetivo é analisar o processo político e a centralidade da mídia. Com a conjuntura já aberta de sucessão presidencial, os grandes jornais deverão intensificar uma ofensiva iniciada há sete anos.

Talvez 2009 também venha a ser a hora e a vez de Augusto Matraga para o campo progressista. Tal como no conto de Guimarães Rosa, trará em si um convite à reflexão sobre conflitos internos e discussões que não deveriam ser adiadas.

É preciso realizar o inventário de erros e acertos. Não parece um bom caminho adiar a discussão necessária, usando como argumento os bons números das pesquisas. Eles refletem o êxito obtido, mas não garantem que a agenda liberal-conservadora tenha sido sepultada em alguma esquina do passado. Ela está presente nas primeiras páginas da grande imprensa, no direcionamento de títulos, de coberturas, no espaço dado às principais figuras de oposição ao governo.

Como já destacou o sociólogo Emir Sader, o Partido dos Trabalhadores ‘precisa revigorar-se social e ideologicamente, para voltar a desempenhar um papel importante no campo político e ideológico do país’. Ignorar tal exigência, ou protelá-la, como tem sido feito, pode levar a uma perigosa junção: o otimismo ingênuo do pensamento coincidindo com a paralisia da ação. É a pior forma de pavimentar a estrada da direita.

‘Vigor do capital e inserção realista’

Lula já assegurou seu lugar na história e disso o jornalismo nativo tem plena consciência. Foi o fiador bem-sucedido de um novo projeto de país. Sob seu comando, o Brasil cresceu, possibilitando o ataque imediato aos problemas de exclusão social, incorporando dezenas de milhões de brasileiros ao mundo do consumo.

Sem abandonar a estabilidade, operou de forma consistente processos de redistribuição de renda que, contribuindo para a ampliação do mercado interno, tiveram função irradiadora sobre o conjunto da economia, incluindo tanto os setores de bens duráveis como os de bens de capital.

Para editores e colunistas, que ainda afirmam que a equipe econômica nomeada pelo presidente seguiu à risca o modelo neoliberal defendido pelos ministros do governo anterior, os números falam por si: o aumento real do salário mínimo, que subiu mais do que o triplo da inflação acumulada desde 2003, e a redução da relação dívida/PIB de 55,5% para 36,6%, enquanto no governo FHC foi elevada de 30% para 55,5%, são bons exemplos de ruptura. A serem sempre ignorados, é claro.

Mas não se pode esquecer que a chamada ‘crise do mensalão’ enfraqueceu o partido que um dia se definiu como pós-comunista e pós-social-democrata. Não deve ser esquecido que a ilusão de modificar a sociedade a partir do Estado foi o principal erro de uma direção que, descolada dos movimentos organizados, centralizou o poder e interditou o debate com outras tendências. Em artigo publicado na revista Teoria e Debate, o cientista político Fábio Wanderley afirmou que a reparação seria ‘incerta e será no mínimo demorada, envolvendo a difícil tarefa de juntar os cacos da fusão inédita que parecia haver na trajetória petista entre o vigor do capital simbólico e os fatores propícios à inserção realista e eficiente no processo político-eleitoral’.

O repactuamento reivindicado

E esse é um processo que ainda precisa ser superado. Para tanto, o PT não pode mesmo se confundir com sua principal liderança que, na percepção do eleitorado, se autonomizou do partido. A legenda vive o dilema de não poder permanecer a reboque de Lula e muito menos a ele se opor em qualquer questão. Essa fragilidade revela o quê? Incapacidade de formulação estratégica? Ausência de novas lideranças carismáticas? Descolamento do pulsar dinâmico dos movimentos sociais, mananciais inesgotáveis de intelectuais orgânicos? Ou a conjunção de todos os fatores citados? Nesse ponto, não há como ignorar que a imprensa soube se aproveitar de erros cometidos. A vilanização de qualquer liderança partidária petista obteve resultados consideráveis, principalmente junto aos estratos médios.

Ousar compor, durante o processo eleitoral, com setores que historicamente se situaram no campo oposto ao da esquerda democrática, foi um gesto de ousadia. Como bem destacou Plínio de Arruda Sampaio, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 2005: ‘Há plena consciência, em todos os setores da esquerda, de que o PT chegou ao governo, mas não ao poder’.

A interlocução com atores conservadores continua se fazendo necessária se queremos obter êxito no repactuamento reivindicado por amplos setores da sociedade civil. Isso é indiscutível. Mas, no interior desse bloco, cabe ao PT reafirmar seu papel de esquerda socialista. Compete a ele a interlocução privilegiada com o MST e outros movimentos organizados. Há uma reforma agrária por fazer, um latifúndio intocado e uma militância a ser reanimada através da práxis. Os segmentos pobres que apóiam o governo precisam de organização para não estagnar em um perigoso consenso passivo.

Alegorias perigosas

Resgatar um projeto hegemônico requer coragem para confrontar erros recentes. A ação da esquerda nos marcos do Estado de Direito deve conciliar a política institucional com a dinâmica dos movimentos sociais dos quais se origina. Lutar pela conjugação de forças dos mundos do trabalho e da cultura é imperativo. E, à luz de tudo por que passamos recentemente, aperfeiçoar mecanismos de controle do capital na esfera política. Por fim, reconhecer o lulismo como expressão de um momento vitorioso, mas que precisa ser superado dialeticamente, e não vivido de forma messiânica.

Politicamente interessada na desestabilização do governo, a oposição, no entanto, sabe dos riscos e do alto grau de incerteza de um quadro de completa desagregação política. As declarações de líderes oposicionistas são sintomas desse desinteresse por uma corrosão completa do sistema político, indicando a preferência por trabalhar em um cenário com alguma previsibilidade. Para a grande imprensa, o ‘pós-Lula’ tem o odor de terra arrasada. De desconstrução de políticas públicas implementadas nos dois mandatos e de restabelecimento de uma agenda externa submissa aos interesses estadunidenses. Vamos precisar de um PT reinventado a partir de sua própria história.

Só a reconquista de Dionóra poderá dar a Matraga força suficiente para vencer novamente os capangas de Major Consilva. E é para ela que as primeiras páginas continuarão sendo feitas. Há que se compreender que o jornalismo brasileiro vive de alegorias perigosas.

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Professor titular de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro, RJ