A passagem de Bento 16 pelo Brasil, por mais que alguns veículos de comunicação tenham tentado, não se prestou à reedição da atmosfera de comoção com a qual se caracterizaram as visitas de João Paulo II, em décadas anteriores. Razões não faltam. Dentre elas, proponho algumas.
A visita de papa a qualquer país, seja em que época for, guarda em si mesma uma missão de evangelização. O que define, portanto, a diferença substancial, diz respeito ao perfil do líder, somado à especificidade estratégica que se agrega à evangelização. A partir daí, sinteticamente, bem se pode reconhecer que João Paulo II era o papa da comunicação, como Bento 16 é (e será) o papa da conceituação.
Enquanto João Paulo II reunia os requisitos afeitos à esfera midiática, Bento 16 abriga expressivos atributos que, para os interesses midiáticos, são geradores de algum incômodo, traço a acentuar-se em função do modelo midiático predominante no Brasil, vocacionado que é para atrelar à cobertura jornalística uma espécie de estética da sensorialização.
Desde a coroação, o novo papa – até por sua formação acadêmica, além de seu desempenho intelectual (um dos interlocutores mais preferidos por Jürgen Habermas), marcado por intenso cunho teorético – tem o compromisso com o significado profundo com o qual se afirma a trajetória histórica da teologia católica. Sob tal ângulo, até por necessidade estratégica, João Paulo II percebeu a necessidade de impor o direcionamento de um catolicismo da horizontalidade, ou seja, um processo de expansão da ‘fé católica’. Para esse fim, nada melhor haveria que a construção de um discurso da sedução. Por outro lado, a Bento 16 não resta outra missão senão a de investir no fortalecimento de um catolicismo da verticalidade com o intuito de disseminar (e qualificar) a ‘razão católica’. Em lugar, pois, do discurso da sedução, dá-se o discurso da significação. Em outros termos, altera-se o eixo de prioridade: do carisma de João Paulo II, passa-se ao apelo à ‘coerência da consciência’. Nessa alteração, repercutem efeitos, seja no modo comportamental da mídia, seja na reação emocional dos fiéis (ou adeptos da crença católica). O resultado foi uma visita didática, educativa e polêmica, o que, em muitos, produziu reações das mais diversificadas.
Novo momento histórico
Bento 16 é conservador? Sim. Tem de ser? À luz dos propósitos traçados pelo Vaticano, sim. A natureza de qualquer religião implica conservadorismo. Bento 16 não esconde suas posições. Tal procedimento é louvável pela coragem com que as sustenta. A mídia é que deveria explorar melhor a tensão entre as conceituações do papa e as contradições (ou não) do público adepto e, ao mesmo tempo, conflitado com as premissas papais. Infelizmente, uma vez mais, a mídia oficial optou pelo mero registro, abdicando de correr riscos, seja a ameaça de perder leitores (espectadores), seja o desconforto junto à CNBB.
No mais, objetivamente, o que sugere a intervenção presente de Bento 16 não passa de necessária chamada à consciência da população católica em relação a possíveis contradições. A civilização, há muito, já ensinou que ‘transformadora’, ‘inclusiva’ e ‘revolucionária’ são configurações que a religião apenas tende a cultuar no nascedouro. Uma vez superada a necessidade histórica, a religião, como instituição, migra para o paradigma da ‘restritividade’ com base em conceitos de uma lógica fechada.
No atual cenário, com as transformações aceleradas nos mais distintos campos da manifestação humana, as autoridades católicas, percebendo o fenômeno da fragmentação em ‘seitas’ (Bento 16 está correto quanto à classificação), impõem inadiável realinhamento. Era inevitável que a teologia católica recolocasse, no centro da evangelização, os pilares de sua própria identidade, ou seja, a ratificação dos dogmas e a inflexibilidade dos sacramentos. É nesse novo momento histórico que a vertente católica chama à responsabilidade o significado de ser (ou não) católico.
Maturidade crítica e reflexiva
Para o quadro cultural em que está imersa boa parte da população brasileira, a vinda de Bento 16 é de extrema valia. Trata-se de um choque de centramento contra a onda da indisciplina das vantagens. Pesquisa recente, amplamente divulgada pela mídia, dá conta de que 99% dos consultados crêem em deus (com minúscula). A mesma pesquisa revela índice crescente de crentes sem religião. Ainda na mesma pesquisa, dados apontam expressiva proliferação de ramificações paralelas, a exemplo dos evangélicos. A julgar, pois, pelo perfil da pesquisa, o Brasil, na condição de maior população católica do mundo, tem, no mínimo, de definir-se quanto ao que significa declarar-se isto ou aquilo. A impressão primeira é a de que o brasileiro, com muita facilidade, diz crer no poder divino para o usufruto dos benefícios e, igualmente, com indisfarçada indisciplina, descarta (ou questiona) a rigidez dos princípios.
Em síntese, o brasileiro se apega à religião na expectativa de contemplar-se com a oferta de ‘bônus’, sem a contrapartida dos ‘ônus’. Bento 16 veio para rasgar a máscara. Em seu ideário, não há ‘negociação’. Na cultura da barganha, o perfil do atual papa não parece ganhar o encanto majoritário da população católica. É bom para o processo de conscientização (tanto para os seguidores quanto para os contrariados) que se instale uma ‘crise de consciência’.
O cidadão que se declara católico tem de compreender que a religião escolhida supõe que o indivíduo é inquilino de seu corpo. Conseqüentemente, sexo livre, aborto, homossexualidade e outras liberdades comportamentais entram em conflito com a máxima católica (igualmente, nas ‘seitas’ derivativas). Ora, se a crença em divindade decorreu de uma adoção de base religiosa, como contrariar as orientações dessa mesma religião? Há um quadro ‘esquizo’, à espera de coerência. Tentar forçar ‘negociações’ é apostar na ampliação de uma cultura da hipocrisia. Arrisco supor que a dose de hipocrisia na reivindicação de boa parte dos crentes católicos brasileiros é menos decorrente da hipocrisia que de um imaginário infantil. Nesse sentido, a vinda de Bento 16 foi benéfica. É hora de cada um, efetivamente, saber o que quer e o que deve fazer. Este é o ‘sacramento’ da maturidade crítica e reflexiva. [Texto concluído às 0h35 de 13/5]
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)