Uma coisa incomum aconteceu semana passada: um texto jornalístico escancarou um problema e provocou um alarido.
É o que se espera de textos jornalísticos – quando são reportagens. Mas, no caso, e eis aí o incomum, o estopim foi um artigo. Ainda por cima de um jornalista, não de uma celebridade ou autoridade no assunto.
Na imprensa brasileira, artigos opinativos não costumam provocar esse auê. Pelo simples fato de que, mesmo sendo jornalistas os que os assinem, contêm geralmente muito mais achismo do que informação trabalhada – para não falar em informação original.
Nos Estados Unidos, a referência inevitável, até os colaboradores eventuais das páginas Op-Ed sabem que seus comentários serão mais bem vistos pelos editores aos quais os enviam se contiverem dados novos e aspas que eles próprios tenham garimpado.
O artigo que gerou o bafafá de que esta nota se ocupa foi escrito pelo jornalista Ali Kamel e publicado no Globo da terça-feira, 7. O texto é tão assertivo quanto contestável em muitas passagens, se não na sua própria premissa – a de que o governo desperdiça uma montanha de dinheiro no que o autor chama, derrisoriamente, ‘programas assistencialistas’.
Mas o artigo repercutiu porque bancou duas coisas.
Primeiro, que em 2002 apenas 13% das escolas informavam à Caixa Econômica Federal a freqüência dos alunos cujas famílias recebiam, via Caixa, o Bolsa-Escola – o maior programa de transferência de renda do governo Fernando Henrique.
[O Bolsa-Escola exigia dos beneficiados que mantivessem os filhos nas salas de aula. O princípio da contrapartida também foi adotado pela administração Lula no Bolsa-Família, que tomou o lugar do fracassado Fome Zero, unificando os programas do gênero já existentes. O governo paga até 95 reais por mês a cerca de 5 milhões de famílias abaixo da linha da pobreza (renda per capita inferior a meio salário-mínimo). Promete cobrir até 2006 todas as 11 milhões de família nessa situação.]
Segundo, escreveu Kamel, hoje ‘o índice é ainda menor, talvez zero’, segundo informação a que diz ter tido acesso, dando a entender, com essa palavra, que se trata de um dado guardado a sete chaves.
Puxão de orelhas
Com a novidade nas mãos, o reportariado foi na hora em cima do ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias. Ele não confirmou nem desmentiu o presumível furo do jornalista. Fez politicamente pior: disse que a contrapartida exigida em lei [a que burocratas e jornalistas vêm se referindo pelo pedregoso anglicismo ‘condicionalidade’] não era essencial. ‘A condição primeira é que ninguém morra de fome no Brasil’, argumentou.
No dia seguinte, apurou-se que o governo, por circular interna de 14 de abril, tinha suspendido oficialmente a fiscalização da freqüência escolar e das demais contrapartidas exigíveis, como vacinações e exames pré-natal.
Previsivelmente, a mídia correu a ‘repercutir’ a enormidade junto ao criador (quando governador do Distrito Federal) do afinal desativado Bolsa-Escola, o ex-ministro da Educação, Cristovam Buarque.
O atual senador, que não perdoa o presidente por havê-lo demitido pelo telefone, quando estava em Lisboa, disse que a sua idéia está sendo ‘assassinada’ – termo que foi para o título da matéria do Valor – e que o Bolsa-Família corria o risco de transformar os seus clientes em mendigos do poder público (rendendo a mais de um redator o apelativo ‘Bolsa-Esmola’).
Na sexta-feira, enquanto o colunista Nelson de Sá, da Folha de S.Paulo, registrava que o site abcpolitiko dava como quase certo que Patrus Ananias ‘está para perder o cargo’, a mídia noticiava que, depois de levar um puxão de orelhas do presidente Lula, o ministro teve que se desdizer em relação à importância dos controles. Além disso, anunciou que a fiscalização escolar voltará em novembro e que providências estão sendo tomadas para o mesmo fim no caso do acompanhamento da saúde.
Reportar a vida real
Do exposto, dá para perceber que, desde o artigo de Kamel, a imprensa praticamente se limitou a divulgar aspas – pertinentes, mas insuficientes – sem saber direito o que fazer com elas.
Ou, como no caso de uma colunista, a tomá-las pelo valor de face e delas tirar conclusões precipitadas. A temeridade resultou de uma declaração do titular da Educação, Tarso Genro – taxativa demais para ser aceita como verdadeira por quem tenha um mínimo de conhecimento de como funciona o governo. Tarso disse: ‘Basta que o Ministério do Desenvolvimento nos dê a listagem das famílias e nós diremos se os estudantes estão na escola’. Ao que a jornalista acrescentou que isso derrubava ‘a versão da dificuldade técnica’.
À maneira do jornalista Ali Kamel, este leitor informa que ‘teve acesso’ a quem conhece de perto a questão e garante que derruba coisa nenhuma.
É absolutamente real, jura a mesma fonte, a dificuldade técnica de checar, primeiro, se os destinatários do Bolsa-Família são mesmo pobres o bastante para merecê-lo; e, segundo, se os merecedores estão fazendo a parte que lhes cabe na operação – para que ela não se degrade em assistencialismo, vulgo esmola.
E é absolutamente real a escassez de matérias sobre uma coisa e outra. A cobertura da imprensa do que acontece nos grotões do país com o programa federal de transferência de renda está abaixo da linha da pobreza, é o caso de dizer.
Não se espera, obviamente, que a mídia imite o Tribunal de Contas da União que – noticiou O Globo do domingo, 12 – auditou o programa em 20 municípios de quatro Estados (Bahia, Goiás, Minas e Rio Grande do Sul). ‘De acordo com o relato dos técnicos’, escreveu a repórter Isabel Braga, ‘a unificação dos programas prejudicou a fiscalização das contrapartidas e provocou a falta de controle social’ (sobre a distribuição dos benefícios).
Mas não será coisa de outro mundo para a Folha, O Globo ou O Estado de S.Paulo ir atrás dos dados, estudos, opiniões e projetos a respeito – para descobrir o pouco que o Planalto sabe e o muito que gostaria de saber – e mobilizar correspondentes e frilas para dar uma olhada no que acontece (ou deixa de) na vida real.
Gancho possível
O mesmo Globo de domingo, a propósito, traz uma entrevista, de Genebra, com Jorge Werthein, o representante no Brasil da Unesco, entidade associada ao governo em programas de promoção social. Perguntou-se a ele, com a melhor das intenções, o óbvio: se a idéia da contrapartida é correta; se o governo deve fiscalizar o seu cumprimento; por que isso é importante – e por aí.
É mais do que hora de ir além disso. À falta de reportagens que o façam, menos mal que um articulista tenha posto a bola em jogo – ainda que de forma enviesada, pode-se argumentar – e que outro, Gilberto Dimenstein, da Folha, a tenha apanhado para fazer um gol de bate-pronto.
O seu artigo ‘Minha cidade, meu país’, também de domingo passado, é extremamente persuasivo ao sustentar que um punhado de funcionários em Brasília não tem a menor condição de descobrir quantos dos 15 milhões de alunos em 170 mil escolas públicas de 5.463 municípios, cujas famílias recebem o Bolsa-Família, estão freqüentando ou cabulando as aulas. Ou se as mulheres grávidas fazem exames pré-natal. Ou se as mães levam regularmente os filhos a postos de saúde.
‘Existe uma questão cultural, da qual a própria imprensa é vítima. Estamos acostumados a sobrevalorizar a capacidade de ação de Brasília’, escreve Dimenstein. ‘Na prática, em vez de ficar teimando em manter o controle do Bolsa-Família em Brasília, o governo já deveria ter apressado a transferência de controle para os municípios e passado a fiscalizar por amostragem.’
Eis um dos ganchos possíveis para uma matéria (ou mais) que a mídia deve faz tempo.
[Texto fechado às 16h55 de 12/9]