No Valor do dia de abertura da Copa do Mundo (12/6), o colunista César Felício faz uma síntese de abordagens da imprensa estrangeira sobre o panorama do país (“Brasil na Copa: ‘Welcome to the jungle’”, pág. A9):
“A sensação de perda de tempo começa antes mesmo de sair dos aeroportos, segundo a revista The Economist, em função da caótica estrutura de transportes. Para o mexicano El Universal, o Brasil não se destaca em nada fora do gramado. ‘Nem a prosperidade é tanta, nem a infraestrutura é moderna, nem as comunicações avançadas, nem a beleza colonial impressiona’, garantiu um colunista do jornal. ‘Motins, greves e engarrafamentos encobrem a abertura em São Paulo’, registrou o inglês The Independent.
“O clima está pesado, de acordo com o Wall Street Journal e o New York Times, que citam a falta de enfeites na rua e de empolgação popular em São Paulo. ‘O país está blindado como se tratasse de uma guerra’, observou o chileno El Mercurio. Organizadores de manifestações contra a Copa ganharam lugar de destaque no noticiário do inglês Financial Times e do francês Libération, que classificou a greve dos metroviários em São Paulo como ‘um movimento de cólera geral’.”
Felício cita ainda o francês Le Monde, o alemão Der Spiegel e dois argentinos, Pagina 12 e Clarín, que conseguem, com suas avaliações negativas, o impossível: “unir a imprensa governista e a oposicionista na Argentina”.
Jantar em palácio
O jornalista atribui pífio resultado ao jantar da presidente Dilma Rousseff com correspondentes estrangeiros, no dia 3/6, já que “dos 21 meios de comunicação que escreveram sobre o país nos últimos dias, mesmo depois do exercício de sedução de Dilma, 19 publicaram análises negativas”.
Mas, convenhamos, isso não é problema da presidente. Os correspondentes estrangeiros são profissionais adultos e não iriam trocar suas percepções e convicções por um prato de comida em palácio, aureolado que fosse por um surto de simpatia de Dilma.
O que parece afetar o trabalho de estrangeiros é uma consequência de polarização exacerbada que torna os promotores da Copa heróis prontos para o triunfo nas urnas de 2014 e erige os críticos em simétrica contrapartida deles.
Realidade manhosa
Talvez falte a alguns jornalistas estrangeiros melhor conhecimento da manhosa realidade nacional. Entre outras razões, porque a produção acadêmica brasileira anda anêmica e, sobretudo, excessivamente fragmentada – decorrência de uma formação relativamente estreita e de critérios que tornam a publicação de papers ferramenta essencial da progressão na carreira universitária.
Impossível ignorar, ainda, a devastadora praga em que consistem esquemas teóricos grosseiros, passados a indivíduos pouco preparados por indivíduos e grupos também carentes de experiência e da capacidade de refletir.
Engenho e arte
Faz falta um pensador coletivo capaz de produzir as famosas análises concretas da situação concreta. E fazem falta indivíduos que mostravam grande discernimento na arena política – um Tancredo, um Ulysses, um Antônio Carlos Magalhães, todos eles capazes de acordar a cada dia com uma avaliação precisa do cenário em que se movimentavam.
Restam hoje, até que se forjem novas cabeças privilegiadas, dois ex-presidentes, Fernando Henrique e Lula. O primeiro, com visão mais ampla e mais equânime do processo, e o segundo, como sempre, pondo todo o seu brilho a serviço dos interesses de sua galáxia (é muito mais que um grupo) política, com maiores ou menores benefícios para a maioria da população, como pretendem ele e toda a grei lulista.
Em qualquer país do mundo, correspondentes de outro país evitam arriscar-se sozinhos em análises de processo e conjuntura. Recorrem a autoridades públicas, estudiosos e lideranças políticas. Vale, portanto, a máxima jobiniana segundo a qual o Brasil não é para principiantes, desde que se lhe acrescente outro truísmo: assim como qualquer formação humana.
Contágio?
Adiante em sua coluna, informa Felício que no alto comando da campanha de reeleição de Dilma “o bombardeio exterior é visto como um clássico caso de contágio da visão estrangeira pela local”. Premida pela necessidade de apresentar a toque de caixa o Brasil a seus leitores, a mídia jornalística internacional “teria se pautado pelo noticiário dos grandes grupos de imprensa brasileiros, que estariam, com diferentes gradações, tacitamente comprometidos com as oposições na eleição presidencial de outubro”.
Ele avalia: “É uma análise que parte do pressuposto de que não existe um olhar estrangeiro, mas somente uma caixa de ressonância de tambores que por aqui batem”. Explicação alternativa é que alguns veículos, como o Financial Times e outros ingleses, teriam eles mesmos interesse em enfraquecer o governo Dilma, por discordarem da condução da política econômica. Não precisariam se apoiar em fontes locais.
Novamente, Felício discorda:
“O problema central dessa visão que atribui à partidarização da imprensa a gênese do mau humor social e das dificuldades de imagem do governo é a aposta que se faz no relato. Por esse perspectiva, os fatos em si nada significam. Tudo depende de como são narrados e de quais são os interesses de quem faz essa narrativa.”
Aos fatos
A narrativa é elemento fundamental da percepção dos fatos, mas não se pode perder de vista, como fazem quase sempre os governos, que boa parte dela é produzida por cidadãos que vivem ou testemunham tais fatos. É o famoso boca a boca.
Não existe um canal único de alimentação do imaginário coletivo. Se a tese dos círculos planaltinos estivesse correta, o povo estaria sujeito a uma lavagem cerebral da qual emergiria uma narrativa única, copiada, por falta de brio profissional, pela imprensa estrangeira.
Isso não existe no Brasil. Se a mídia jornalística estrangeira comete erros, são de sua própria autoria e responsabilidade. O mais plausível é que os jornalistas estrangeiros tenham visto ou estejam vendo e sentindo o que estão relatando, dentro de suas limitações humanas e profissionais.
É tanto mais interessante que a lúcida advertência de Felício seja publicada no único jornal, entre os três mais importantes sediados em São Paulo, que noticiou, na mesma edição (pág. A7), pesquisa do instituto Vox Populi, divulgada pela revista Carta Capital, segundo a qual Dilma Rousseff ganharia a eleição no primeiro turno caso ela fosse realizada no momento da sondagem. E o jornal Valor ainda termina a matéria com o seguinte serviço: “Mais detalhes sobre a pesquisa estarão disponíveis na edição de Carta Capital que circula amanhã”. A revista, como se sabe, adota uma linha política de ostensivo governismo.
Veja bem
O Valor publicou igualmente, em 9 de junho, um conjunto de reportagens na contramão do ceticismo generalizado diante das obras feitas sob o guarda-chuva da Copa. Começa com a constatação do planejamento deficiente (marca registrada do país, é bom que se diga), mas lista ganhos resultantes da aplicação de R$ 26 bilhões em mais de 80 projetos.
“A capacidade dos aeroportos cresceu 36% e o parque esportivo – ‘congelado’ desde os anos 1970 – foi renovado, com tecnologias usadas pela engenharia local de forma inédita. A rede hoteleira ergueu 70 novos empreendimentos, com mais de cinco mil quartos, elevando em 20% a capacidade de hospedagem do país. Em algumas capitais, a indústria de telecomunicações antecipou a instalação de torres e cabos que elevaram em até 50% a capacidade de transmissão de voz e dados”, cita, entre outros avanços, a matéria.
Para que o leitor tenha ideia do tom adotado, seguem-se as imagens da chamada na capa do jornal, da manchete em página par do caderno “Empresas” e do título principal da página ímpar subsequente (B11).
O grotesco facciosismo na cobertura da Copa, ilustrado pelas imagens abaixo – fruto da visão curta que assola importantes redações – não deve levar a análise da mídia, seja ela governista ou oposicionista, a cair no erro das generalizações, por mais ululantes que sejam os apelos do panfletarismo vigente.