Ao reconhecer que se equivocou ao apoiar o golpe militar de 1964, o Globo deu um passo gigantesco em matéria de transparência e responsabilidade. Foi o primeiro, o mais ruidoso e, até agora, único mea culpa já proclamado na história da imprensa brasileira.
Nos últimos dias, o Globo foi adiante, obrigado a dar sequência à memorável confissão de 31/8/2013. De forma menos lhana, algo áspera, e em alguns momentos até arrogante, o jornal prosseguiu na opção de expor-se ao debate, mostrar o rosto e aceitar a crítica em suas próprias páginas. No conjunto, o jornal saiu-se galhardamente das quatro mortificações autoinfligidas.
Tudo começou (em 16/2) com a veemente cutucada do seu colunista dominical, Caetano Veloso (ver “Freixo outra vez”), na cobertura do jornal sobre os responsáveis pela agressão e morte do jornalista televisivo Santiago Andrade. Dias antes, o jornal veiculara falácias sucessivas tentando incriminar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), conhecido pela sua retidão e coragem no enfrentamento com facções criminosas e milícias. Caetano defendeu o parlamentar e desmontou frontalmente o noticiário.
Sem retorno
Primeiro mérito: o Globo não censurou a traulitada. Publicou-a tal como o autor a entregou. Com o destaque e no lugar habitual (no Segundo Caderno). Nas últimas seis décadas jamais se viu tamanho fair play num grande jornal brasileiro. Geralmente o que se impõe é a mordaça. Autocríticas só podem ser proferidas nos estreitos limites da coluna do ombudsman e por seu mandatário. Apenas um grande jornal, a Folha de S.Paulo, mantém o cargo de ombudsman, ouvidor ou “defensor do leitor”. No resto da nossa imprensa, impera a represália. E a indefectível “lista negra”.
Segundo mérito: no dia seguinte (segunda-feira, 17/2) o jornal tentou defender-se das acusações do colunista com um enorme editorial, “O dever de um jornal”.
Terceiro mérito: na terça-feira (18/2), o jornal publica, na página frontal aos editoriais, vigorosa e altiva réplica do deputado Marcelo Freixo (ver “A exaltação de um factoide”).
Quarto mérito: o jornal voltou a defender-se em outro grande editorial (“O dever de um jornal – II”), com minuciosas explicações sobre os procedimentos que adotou na cobertura.
O quinto mérito, espera-se, deverá ocorrer no domingo (23/2), quando Caetano Veloso retomar o lugar e a sua pauta habitual.
Balanço: o Globo saiu machucado da refrega. A reação do leitorado através das redes sociais foi forte, continuada, pontuada por um grande número de ameaças de corte nas assinaturas. Em compensação, o jornal produziu breve e inolvidável experiência em matéria de pluralismo e exercício do contraditório. Isso não tem preço e não tem volta.
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