Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bruno Porto

"Por que os estudantes sabem tão pouco sobre o golpe militar e suas conseqüências? Diretora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, a professora e historiadora Marieta de Moraes Ferreira atribui a falta de informação principalmente à má qualidade do ensino brasileiro em geral. Ela critica os livros didáticos utilizados pela maioria das escolas.


– Tanto o conteúdo quanto a forma de apresentação são muito ruins. Os assuntos são tratados de uma maneira pouco adequada e não atraem o interesse dos alunos – diz Marieta. – Fizemos uma avaliação de livros didáticos recentemente e constatamos que existe uma lacuna entre a qualidade das pesquisas universitárias de pós-graduação e o que se escreve nos livros. As novidades não são absorvidas.


Ela diz que tanto os professores do ensino médio quanto os do superior costumam dar pouca ênfase à história contemporânea. Marieta acredita que eles são influenciados por uma corrente teórica (‘ultrapassada’, segundo ela) que defende o distanciamento no estudo da história. Ou seja, assuntos recentes não podem ser abordados. Ela aponta outro problema que leva os estudantes à falta de informação.


– Muitos dos assuntos relacionados ao golpe de 64 e à ditadura militar são polêmicos ou ainda não foram devidamente explorados pelos estudiosos. Por isso os professores evitam tratar deles – diz Marieta.


Professor de história da UniCarioca e um dos organizadores da pesquisa, Denilson Botelho faz coro com Marieta e diz que também vê na precariedade do sistema de ensino uma das raízes do problema. Ele também critica as reformas implementadas pelos militares no ensino superior.


– Elas esvaziaram o conteúdo de ciências humanas de uma maneira geral. O objetivo das reformas era despolitizar as universidades – diz Denilson. – O resultado é que muitos professores de hoje não estão preparados para tratar de assuntos como o golpe.


Entre os estudantes que foram entrevistados está Luísa Pires, de 17 anos, aluna do terceiro ano do Colégio Estadual João Alfredo, em Vila Isabel. Moradora de Água Santa, ela sabia que o golpe militar acontecera dia 31 de março de 1964, mas não que João Goulart era o presidente na época. Ela respondeu que Tancredo Neves foi deposto pelos militares.


– Fiquei nervosa na hora e respondi que era o Tancredo – conta Luísa, que quer cursar psicologia.


Ela está entre os 32,8% estudantes que responderam que o milagre brasileiro foi ‘o plano econômico que acabou com a inflação’ e os 8,89% que assinalaram que Frei Caneca foi torturado até a morte durante a ditadura. Apesar dos erros, Luísa diz que se interessa pelo golpe de 64.


– Minha irmã é segurança no Museu da República. Às vezes ela leva uns livros de história para casa e eu leio. Eu também me informo sobre o assunto vendo ‘Um só coração’ – diz ela, referindo-se à minissérie da Rede Globo, que compreende o período entre 1922 e 1954.


Estudante de publicidade da UniCarioca, Raquel de Gouveia Azeredo, de 21 anos, também respondeu que Frei Caneca foi assassinado durante a ditadura. Moradora de Caxias, ela admite que não é muito boa em história.


– História não é meu forte. E publicitário tem que sacar de tudo – diz.


Theo Costa, de 20 anos, sabia todas as respostas da pesquisa. Bem, quase todas. Estudante de jornalismo na Uerj, ele admite que não lembrou de cara que o golpe aconteceu dia 31 de março de 1964. Theo diz que entende do assunto porque adora ler.


– Nem todos têm acesso à informação. Mas dizer que o Tancredo foi deposto pelos militares em 1964 é um absurdo."


***


"Como eles se saíram", copyright Folha de S. Paulo, 30/03/04


ALEXANDRE RODRIGUES, 21 anos


Morador do Méier, Alexandre diz que não se saiu muito bem na pesquisa da UniCarioca sobre o golpe de 64. O estudante, que terminou o ensino médio e vai fazer vestibular para administração, conta que teve dificuldade com as perguntas relacionadas a datas e nomes.


– Eu sei o que aconteceu na época, mas tinha uns nomes muito estranhos na pesquisa. Por isso fui mais ou menos – justifica Alexandre.


Ele diz que quase não estudou o golpe de 64 no colégio.


– As aulas sobre a ditadura militar não duraram mais do que um mês. Vi isso muito rapidamente no colégio. Não tem como a gente fixar.


FERNANDA CAMARGO, 20 anos


Fernanda também acha que errou boa parte das perguntas da pesquisa porque estudou pouco o golpe.


– A ditadura eu lembro de ter estudado muito pouco – diz a aluna de jornalismo da UniCarioca.


Ela está entre os 34,79% que responderam que Jânio foi deposto pelos militares. Fernanda também assinalou que Floriano Peixoto foi um general importante de 1964 a 1984.


RODRIGO SENA, 21 anos


‘O assunto (o golpe de 64) não faz parte do meu dia-a-dia’, diz Rodrigo, justificando por que não foi bem na pesquisa. Aluno de publicidade da Estácio, ele também atribui seu mau desempenho ao fato de ter estudado pouco a ditadura.


– Reconheço os nomes, mas não sei direito o que as pessoas fizeram – diz.


Ele está entre os 32,8% que responderam que o milagre brasileiro foi o ‘plano que acabou com a inflação’.


RAFAEL PENA, 19 anos


Estudante do terceiro ano do Colégio Estadual João Alfredo, em Vila Isabel, Rafael está entre os 28% dos entrevistados que sabem que o golpe aconteceu dia 31 de março de 1964. No entanto, ele não acertou a maioria das outras perguntas. Rafael respondeu que Tancredo Neves foi o presidente deposto pelos militares.


– Essa eu chutei – confessa ele, que quer fazer faculdade de educação física.


Morador da Taquara, ele foi um dos jovens que responderam que o general Osório, que comandou as forças brasileiras na Guerra do Paraguai, foi importante entre 1964 e 1984."




Roldão Arruda


"É Permitido Proibir", copyright O Estado de S. Paulo, 31/03/04


"No dia 12 de dezembro de 1968, após tomar conhecimento do resultado da votação em que o Congresso negou à ditadura licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, acusado de ofender as Forças Armadas, o diretor de redação do Estado, Julio de Mesquita Filho, começou a redigir a Nota Um – o primeiro editorial da seção Notas e Informações. Com o título Instituições em Frangalhos, procurava descrever a crise política e a falta de visão do general Costa e Silva, que pensava poder governar o País como se fosse uma caserna, além de vaticinar dias mais difíceis.


Saiu um texto indignado, que a maioria dos leitores do Estado e do Jornal da Tarde, onde também seria publicado, nunca chegou a ler. Às três horas da madrugada, o general Sílvio Correia de Andrade, chefe do Departamento de Polícia Federal em São Paulo, chegou ao jornal e foi para a oficina, onde pegou um exemplar na boca da impressora. Depois de ler o editorial, mandou parar a impressão e ainda confiscou todos os exemplares que já estavam nos caminhões, prontos para serem despachados. Numa conversa com Julio de Mesquita Filho, diretor-responsável do jornal, o general chegou a propor a liberação do jornal desde que o editorial fosse substituído por outro que não fizesse referência à derrota do governo. Mas a proposta não foi aceita.


Estava em marcha um dos piores períodos de censura à imprensa no País. Durante o governo Castello Branco, ocorreram pressões contra alguns empresários da área de comunicações e jornalistas. Jornais de tendência política mais à esquerda foram fechados, mas prevaleceu uma relativa liberdade. Na oficina do Estado, naquela madrugada, até ela começava a desmoronar.


O episódio ocorreu horas antes da assinatura do Ato Institucional n.º 5. Ainda no dia 13, Julio Mesquita Filho compareceu a uma reunião com o governador Abreu Sodré e o general Andrade, no Palácio dos Bandeirantes, onde foi informado que a partir dali o jornal deveria ser mais cauteloso nas críticas ao regime. Ele respondeu que a censura era uma tarefa da Polícia Federal e que o Estado não praticaria a autocensura.


‘Se vocês quiserem, censurem’, disse. E foi o que fizeram.


Inconformado com a falta de liberdade, o diretor-responsável do jornal, que morreu em 1969, não escreveu mais editoriais. Ainda em sinal de protesto, o espaço nobre da página 3 deixou de ser utilizado. ‘Não comentamos mais matéria política por não dispormos de liberdade para dizer o que pensamos’, explicou Julio de Mesquita Neto, que substituiu o pai na direção do jornal, durante um debate na ECA/USP, em 1970.


A censura aos dois jornais persistiu de forma irregular durante quase seis anos, entre 1968 e 1975. O rigor dos censores foi maior ou menor de acordo com as necessidades do regime. A pior fase aconteceu a partir de 1972, com a instalação definitiva de censores na redação. Era um momento de instabilidade para o regime, às voltas com uma disputa interna em torno da sucessão do general Garrastazu Médici.


No dia 15 de setembro daquele ano, o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, proibiu a publicação de notícias sobre redemocratização, anistia e sucessão presidencial. Passados 4 dias, ele recebeu uma carta indignada de Ruy Mesquita, diretor do JT. Começava assim: ‘Ao tomar conhecimento dessas ordens emanadas de V.Sa., o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, senhor ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura.’


A maioria das publicações preenchia o espaço censurado com outras notícias, mas alguns editores se recusavam a fazê-lo. O semanário Movimento, que nasceu censurado em 1975, substituía os textos vetados com retângulos com fundo branco ou negro, com a inscrição Leia Movimento. A revista Veja denunciava o rastro do censor com figuras de demônios.


Os Lusíadas – No Estado e no JT a orientação era mostrar o resultado da censura aos leitores da forma mais clara possível. A primeira tentativa, logo proibida, foi deixar os espaços em branco. Então, por sugestão de Ruy Mesquita, o JT começou a publicar receitas culinárias nos espaços censurados. Muitos leitores demoraram a compreender a razão daquelas receitas de empadões e tortas no meio do noticiário político.


O Estado decidiu inicialmente publicar cartas de leitores no lugar do que fora proibido. Em julho de 1973, por sugestão de Julio de Mesquita Neto, os buracos começaram a ser preenchidos com poemas – de Gonçalves Dias, Cecília Meireles, Olavo Bilac, Manuel Bandeira. No dia 2 de agosto saiu um trecho do épico Os Lusíadas, de Luís de Camões. Chamou tanto a atenção que se decidiu manter a receita.


Entre 1973 e 1975, Os Lusíadas apareceram no jornal outras 660 vezes. Alguns leitores não entenderam e um deles chegou a escrever à redação pedindo mais cuidado na publicação do poema, pois na forma como era feita não conseguia colecioná-lo.


O efeito global, no entanto, foi positivo: Camões acabou virando sinônimo de censura, como observou a historiadora paulista Maria Aparecida d’ Aquino, na tese de mestrado Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-78): ‘O poema de Camões ficou no imaginário coletivo como lembrança de um tempo em que os cortes dos censores promoveram sua publicação. Restou como símbolo de resistência.’ Certa vez, irritado com a proibição de suas entrevistas no Estado, o deputado Ulysses Guimarães desabafou: ‘Quem mais atrapalha o MDB é Luís de Camões. Este poeta tem-me perseguido desde os bancos escolares, quando eu o achava incompreensível.’


O censor vetou a frase.


Em 1973, foi proibida a divulgação da notícia de que um ministro (Cirne Lima, da Agricultura) renunciou, e liberada a notícia da nomeação de seu sucessor. O espaço da matéria sobre a demissão foi substituído com um anúncio da Rádio Eldorado, onde se lia: ‘Agora é samba.’


No dia 3 de janeiro de 1975, véspera do centenário do Estado, foram publicados os últimos trechos de Os Lusíadas e as receitas do JT. No dia seguinte os censores deixaram a redação."




O Estado de S. Paulo


"‘Instituições em frangalhos’", copyright O Estado de S. Paulo, 31/03/04


"Este foi o último editorial escrito por Júlio de Mesquita Filho e que resultou na apreensão de O Estado de S.Paulo e do Jornal da Tarde do dia 13 de dezembro de 1968 e desencadeou a censura aos órgãos de imprensa independentes do País. Nele são apontados os desvios a que a Revolução de 64 estava sendo levada, numa previsão do que viria a acontecer na noite daquele mesmo dia. Este editorial marcou o início da luta de ambos os jornais contra o regime de arbítrio que se instalou no País.


Das palavras ultimamente pronunciadas pelo sr. presidente da República, infere-se não ser o seu estado de espírito aquele que até há pouco sistematicamente definia a confiança que depositava em si e na sua gestão. O otimismo, de resto inconsistente, que transpirava de todas as suas atitudes, acabou por ceder lugar a uma inquietação crescente, na qual são evidentes os sinais de que admite S. Exa. que as coisas venham a piorar – não porque elas se tenham em si mesmas deteriorado, mas em conseqüência dos erros praticados por S. Exa. É que, com o correr do tempo e o contacto com a realidade, vai S. Exa. percebendo que governar uma nação de mais de 80 milhões de habitantes e que acaba de dar, com a vitória de 64 – que, embora S. Exa. a considere como obra das Forças Armadas, se deve ao próprio esforço da coletividade -, uma demonstração viva de fé democrática, é coisa muito diferente do comando de uma divisão ou de um exército.


Ao assumir as funções de presidente da República, imaginou o sr. marechal Costa e Silva que para essa dificílima missão estava perfeitamente capacitado, tanto mais que na profissão que adotara havia galgado com facilidade toda a escala hierárquica, dando sempre provas de aptidão e de descortino. Ao deixar os quartéis para bruscamente se investir das responsabilidades de supremo mandatário do Estado brasileiro – e isso nas condições que ele e seu antecessor estabeleceram, de comum acordo e prescindindo das advertências que lhes dirigiam cotidianamente os que haviam encanecido na vida pública – fê-lo S. Exa. de ânimo leve, na convicção de que, no novo terreno que pisava, bastar-lhe-ia empregar a experiência adquirida na carreira militar e devotar aquele mesmo respeito que sempre demonstrara pelos regulamentos disciplinares ao sistema legal que juntamente com o sr. marechal Castelo Branco tinha encomendado ao sr. Carlos Medeiros da Silva e aos autores de seus complementos naturais, as leis de Imprensa e de Segurança Nacional.


No decorrer das primeiras etapas do seu governo tudo parecia sorrir-lhe, pois que, além de saber contar discricionariamente com a força dos regimentos, das brigadas e das divisões, dava ainda por certa a passividade da Câmara e do Senado, ambos constituídos pelos dois conglomerados que ele, como o seu antecessor, acreditava representarem a substância popular. Já nessa altura, para aqueles que através dos tempos afinaram aquela sensibilidade sem a qual ninguém será capaz de perceber os sinais precursores dos grandes terremotos, se mantinha S. Exa. acima dos acontecimentos, na ilusória suposição de que tudo ia pelo melhor e que, se algumas vozes se levantavam em dissonância, não correspondiam ao sentir das camadas profundas da nacionalidade. Pouco tempo durou, porém, a euforia presidencial. Umas após as outras, começaram a manifestar-se as contradições do artificialismo institucional que, pela pressão das armas, foi o País obrigado a aceitar. A desordem passou a campear nos arraiais estudantis, ao mesmo tempo em que, ante o mal-estar geral, o clero revoltoso fazia sentir a sua presença até mesmo nas praças públicas. Dentro dos próprios limites do feudo aparentemente submisso à vontade do Palácio da Alvorada, não se passava dia sem que se manifestassem sintomas da insurreição latente. A Arena aderia à rebeldia geral com tamanha evidência que o próprio MDB sentiu que era chegado o momento da desforra. Resolveu então, com uma ousadia que a todos espantou, enfrentar a ditadura militar em que vivemos desde 1964 ferindo na sua suscetibilidade as Forças Armadas brasileiras.


Já agora, a ordem que julgava S. Exa. o sr. presidente da República dever a Nação às instituições que ele lhe impôs revela-se uma vã aparência, pois que, ao apelar para os que considerava correligionários seguros das acutiladas da oposição contra os seus companheiros de armas, se vê S. Exa. totalmente desamparado. Sob o cansaço das humilhações sofridas, aquilo que S. Exa. supunha ser a maioria parlamentar, lembra-se enfim de que, pela própria Constituição que passivamente aceitara, lhe assistia o direito de afirmar as suas prerrogativas, como lhe assistia a autoridade moral suficiente para discutir as razões com que tanto as Classes Armadas como o Executivo Nacional pretendiam ditar-lhe a pena a aplicar a um deputado faltoso. É então que o ex-general de exército, habituado a não admitir que lhe discutam as ordens, se viu na pouco edificante posição de deixar de lado aqueles escrúpulos que o tinham levado a afirmar que jamais transgrediria um milímetro sequer as linhas da legislação que ele mesmo traçou para cometer uma série de desmandos contra a Lei e o regulamento interno do Congresso, tentando arrancar da Comissão de Justiça da Câmara, sob o protesto do seu digno presidente e o sentimento de nojo do País, a licença para processar o autor das injúrias aos militares.


Conforme o havia decidido, a sua vontade foi obedecida naquela Comissão, mas à custa da confiança que S. Exa. depositava em si mesmo e da excelência das instituições vigentes. E é diante desse quadro, todo ele feito de tonalidades sombrias, que nos achamos. Até aqui as coisas pareciam suscetíveis de uma recomposição. Apesar de tudo, a passividade do Congresso Nacional, aliada à disciplina militar, poderia ainda fazer as vezes do apoio da opinião pública. Agora, porém, que são claros os sinais da desagregação irredutível da maioria parlamentar, como o comprova a estrondosa derrota sofrida ontem pelo governo, quando mais de 70 deputados da Arena votaram contra a concessão de licença para processar o deputado Marcio Moreira Alves, pergunta-se: que é que poderá resultar de um estado de coisas que tanto se assemelha ao desmantelamento total do regime que o sr. presidente da República julgava fosse o mais conveniente àquele delicadíssimo e frágil arquipélago de grupos sociais a que se referia ainda ontem, cuja integridade, é S. Exa. o primeiro a reconhecê-lo, está por um fio?




Antônio Carlos Pereira e José Maria Mayrink


"‘Derrotados escreveram a história’", copyright O Estado de S. Paulo, 31/03/04


"O jornalista Ruy Mesquita, diretor de O Estado de S. Paulo, um dos articuladores do movimento de 1964, afirma que, mais do que o medo do comunismo, ‘um risco real e iminente’, foi a quebra da hierarquia militar que levou à derrubada do presidente João Goulart. O jornal, que apoiou o movimento, mas rompeu com o regime já com a promulgação do AI-2, quando os militares caminharam para a ditadura, pagou caro por sua resistência à arbitrariedade. ‘O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai’, disse o jornalista, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho, que morreu em junho de 1969, seis meses após a edição do Ato Institucional n.º 5. O Estado passou seis anos sob censura.


Estado – O que levou os militares ao movimento de 1964?


Ruy Mesquita – Acho fundamental, para que se possa fazer uma análise objetiva e fria, sobre a chamada revolução de 64 – que na realidade não foi uma revolução, foi uma contra-revolução, não foi um golpe, foi um contragolpe, – situá-la no tempo político internacional. No começo dos anos 60, com a vitória de Fidel Castro e com a sua entrada no jogo do bloco soviético, o foco principal da guerra fria passou a ser a América Central, o centro geográfico das Américas. A tal ponto que ali nasceu a primeira e talvez única ameaça concreta e iminente de uma guerra nuclear, quando em 62 houve a crise dos mísseis nucleares que os russos instalaram clandestinamente no território cubano. O risco era real. Diz-se que a história é sempre escrita pelos vencedores. A história do golpe de 64 foi escrita pelos derrotados.


Estado – Era isso que preocupava os militares?


Ruy Mesquita – Quem não viveu essa tensão terrível não entende a reação perfeitamente natural dos militares, diante do anúncio formal pelo governo brasileiro de que ele pretendia fazer alguma coisa parecida aqui no Brasil, com um regime de repúblicas popular-democráticas, como eram chamados os países da Europa oriental ‘anexados’ ao império soviético. Embora eu continue convencido de que a razão principal da mobilização espontânea de oficiais de patente de coronel para baixo – pois não havia nenhum general 4 estrelas conspirando abertamente no começo – foi a subversão sistemática da hierarquia nas Forças Armadas. Nós fomos procurados aqui no Estado acho que um ano antes de março de 64.


Estado – Por oficiais do Exército?


Ruy Mesquita – Por dois oficiais do II Exército – o tenente-coronel Rubens Restel e o major Bozon. Em conversa comigo, diziam que tínhamos de nos articular para enfrentar o golpe que certamente ia ser desferido pelo Jango Goulart. Portanto, era um movimento defensivo contra uma ameaça concreta ao regime democrático brasileiro. A partir daí, foi se articulando a maioria esmagadora da oficialidade do Exército e também da Força Aérea. Não me lembro muito da participação da Marinha. Essa mobilização, como disse, se deveu principalmente ao movimento de subversão da hierarquia militar que começou violentamente e que resultou em primeiro lugar na revolta dos sargentos em Brasília, e muito mais tarde, já na véspera da Revolução, na revolta dos marinheiros liderados pelo cabo Anselmo, e que resultou na demissão do ministro da Marinha, almirante Sílvio Mota, por tentar reprimi-lo. Logo depois houve o ‘comício’ dos sargentos e fuzileiros navais do almirante Cândido Aragão, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro, ao qual compareceu o próprio Jango Goulart, que pronunciou um discurso.


Estado – O alerta partiu dos militares ou os civis também estavam preocupados?


Ruy Mesquita – Foram os militares que começaram o movimento. Militares de coronel para baixo, comandantes de tropa principalmente. Assim como vieram ao Estado, oficiais foram a outros setores da sociedade pedir apoio para o movimento, inclusive apoio financeiro. Houve até contribuições para compra de armas no Paraguai. Os militares agiram em legítima defesa. Se cometeram um crime contra a ordem estabelecida, foi um crime que teve essa atenuante, a legítima defesa.


Estado – Que tipo de revolução se queria?


Ruy Mesquita – Em nosso caso, não se pretendia uma revolução radical – nem era revolução na verdadeira acepção do termo, porque era apenas um golpe para deter o golpe que se preparava. Era em defesa da democracia, com um programa do primeiro presidente militar, o marechal Castello Branco, e que ele não conseguiu executar. Programa que previa um prazo ‘revolucionário’, de ‘limpeza’ do cenário político, com cassações de direitos políticos, de menos de dois meses. Ele estabelecia que o mandato de Castello Branco seria o resto do tempo do mandato de Jango. Mantinha-se o calendário eleitoral e o poder seria devolvido ao civil eleito. Tudo isso seria alterado pelo AI- 2.


Estado – Como foi a repressão nos primeiros meses?


Ruy Mesquita – Um texto que escrevi na época mostra quais eram o objetivo e as limitações desse movimento que acabou se transformando em 20 anos de ditadura. O ‘produto’ do trabalho da Comissão Geral de Inquérito (CGI), onde os militares interrogavam pessoas que achavam que tinham culpa no cartório, pela deterioração do regime democrático principalmente por motivo de corrupção, encerrada em 15 de junho de 1964, foi o seguinte: 299 pessoas com os direitos políticos suspensos por dez anos, incluindo 5 governadores, 11 prefeitos, 51 deputados federais e 2 senadores. Entre os punidos, estava o ex-presidente Juscelino Kubitschek – o que foi, na minha opinião, o primeiro erro grave da revolução, praticado contra a vontade explícita de membros importantes do governo Castello Branco, como Roberto Campos. Foi por imposição da linha dura, que se instalou no centro do primeiro governo, na figura de Costa e Silva. Havia também 46 oficiais das Forças Armadas que foram transferidos para a reserva com todas as regalias proporcionadas pelos regulamentos militares. Nenhuma prisão sem culpa formada. Era para ser o ponto final.


Estado – Mas não foi.


Ruy Mesquita – Não foi, por fatos supervenientes. Acredito que essa moderação no tratamento dos inimigos da revolução foi a primeira razão da ousadia com que mais tarde se apresentou a reação, da esquerda mais radical, até em forma de assassinatos e de ações de guerrilha, com seqüestros de embaixadores, o que provocou o agravamento brutal da repressão, que chegou a partir do AI-5. Essa, para mim, a explicação para o fato de a esquerda ter adotado uma tática complemente desproporcional à sua força real, o que tornou relativamente fácil para as forças ditatoriais, depois do AI-5, liquidar com essa forma de resistência. Hoje, é essa a parte da história que se comenta, esquecendo-se a breve história da revolução que nós apoiamos. Aliás, muito breve mesmo, porque o rompimento do Estado com a revolução se deu já no governo do Castello Branco, com a promulgação do AI-2.


Estado – Antes do AI n.º 2, que foi em outubro de 65, os senhores já se convenceram de que a revolução não seguiria o caminho que pretendiam?


Ruy Mesquita – Não, antes do AI-2, não. Meu pai tinha muitas conversas com o Castello Branco, que se mostrava decidido a cumprir o seu ‘programa’, de apenas completar o mandato de Jango e convocar as eleições. Seu candidato in pectore era Carlos Lacerda. É outra correção da história que eu faço questão de fazer, já fiz publicamente várias vezes, mas não sei quantas pessoas sabem disso. Ao contrário do que a história diz hoje, Carlos Lacerda foi contrário ao golpe militar. Fui testemunha de um encontro dele com meu pai no qual ele disse isso. Foi num período em que estava sendo caçado. Como governador do Estado da Guanabara, ele estava ameaçado de morte. Um oficial pára-quedista do Exército era o ‘caçador’. Uma noite, ele apareceu, sem se anunciar, na fazenda da minha família, em Louveira, para conversar com meu pai. Meu pai disse a ele que achava que o golpe era inevitável e que deveria vir o mais breve possível a intervenção militar para deter o golpe de Jango Goulart.


Estado – Qual foi a reação de Lacerda?


Ruy Mesquita – Respondeu com uma frase que não me lembro se era literalmente esta, mas que tinha este sentido: ‘Dr. Júlio, eu não posso admitir isso, porque tenho certeza de que, se eles subirem lá, não saem tão cedo, e eu vou perder o que eu acho que tenho o direito de pelo menos disputar – a chance de ser presidente deste País.’ Carlos Lacerda nunca participou, até o fim, de conspirações.


Estado – O senhor participou?


Ruy Mesquita – Eu participava ativamente. Minha casa era centro de conspiração. Houve dezenas de reuniões em minha casa, nesse período, de oficiais do II Exército com civis que estavam na conspiração.


Estado – Depois, Carlos Lacerda não apoiou os militares?


Ruy Mesquita – A razão pela qual ele aceitou o convite de Castello Branco para ser o defensor da revolução, naquela viagem dele a Paris, onde, com toda a sua verve, gozou os jornalistas franceses, que acreditavam que a revolução era mais uma quartelada sul-americana, foi que ele ainda acreditava que fosse possível cumprir o programa de Castello Branco com a manutenção do calendário eleitoral. Para ele também, o AI-2 foi o divisor de águas.


Estado – O senhor teve esperanças até quando, até o AI-5?


Ruy Mesquita – Não. Ainda as mantive depois do AI-2, mas fui perdendo a partir do primeiro atentado ‘terrorista’, digamos assim, contra a Revolução. Foi aquele do Aeroporto de Guararapes, no governo Castello Branco. Morreu um almirante. O alvo era o Costa e Silva que estava a caminho de Recife. Não sei se o avião dele atrasou ou se o pessoal que botou a bomba se antecipou, sei que a bomba explodiu antes de ele chegar ao aeroporto.


Estado – Os americanos apoiaram os militares?


Ruy Mesquita – É outra coisa que acho importante desmistificar: a idéia de que os americanos conspiraram junto com os militares. A verdade histórica é que não houve um período na história do Brasil em que tivéssemos uma posição tão hostil aos Estados Unidos, a partir do governo Costa e Silva. Já no segundo governo, com Magalhães Pinto como chanceler, por incrível que pareça, ele passou a adotar uma posição contrária aos Estados Unidos, com um tom já terceiro mundista que foi se acentuando na gestão de Gibson Barbosa, primeiro chanceler do governo Medici. No governo Geisel, com o chanceler Antônio Azeredo da Silveira, veio o ‘pragmatismo responsável’, que era uma posição de ‘alinhamento automático’ contra os Estados Unidos como líder do mundo ocidental na ONU, na Organização dos Estados Americanos (OEA), em todos os organismos internacionais. Isso nos levou a fazer de Saddam Hussein nosso parceiro privilegiado e ao rompimento do acordo militar com os Estados Unidos.


Estado – O que representou para o jornal o apoio à deposição de Goulart?


Ruy Mesquita – O jornalista Alberto Dines me fez essa pergunta para seu programa de televisão: por que o Estado acabou apoiando a derrubada de Jango e qual foi o preço que pagou por isso, se é que houve um preço? Por que o Estado apoiou já está explicado em tudo o que eu disse até agora, esclarecendo que no caso de meu pai, muito mais do que o comunismo o que o preocupava era o que ele considerava a continuação do varguismo. Para ele, Jango era o herdeiro de Getúlio Vargas e meu pai tinha tido a experiência que teve na ditadura Vargas. Aliás, o único crime que não perdôo ao Exército foi ter apoiado irrestritamente, por tanto tempo, a ditadura do Estado Novo. Getúlio Vargas só não aderiu totalmente ao nazismo, na Segunda Guerra Mundial, porque os EUA entraram na guerra e ele foi obrigado a mudar a posição que vinha seguindo até então, traduzida no famoso discurso que pronunciou dias depois da queda da França, em junho de 1940, na comemoração da Batalha do Riachuelo, no qual saudou a vitória do nazismo dizendo que ‘uma nova aurora surge na humanidade com a derrota do liberalismo na guerra’. O medo de meu pai era que Jango Goulart, com as limitações que Deus lhe deu – de cultura, de tino político, de competência política – também acreditasse que a maré montante do comunismo ia resultar no domínio total do mundo. Além do mais, tinha como pano de fundo a aliança dele com o Luiz Carlos Prestes. Lembro a frase de Prestes, que alardeava: ‘Nós já estamos no governo, mas ainda não estamos no poder’.


Estado – Mas qual foi o preço que o jornal pagou?


Ruy Mesquita – Em 129 anos de luta, nunca o Estado cogitou dos custos possíveis da obediência a um comando da sua consciência cívica. Mas o preço que nós pagamos pela derrota de nossos ideais em 64 foi caro: foi a vida de meu pai, em primeiro lugar. Porque com o AI-5, quando ele parou de escrever, como escrevia diariamente, o primeiro editorial do Estado, ele caiu doente. Era um homem de uma saúde muito boa, mas era um psicossomático. Todas as suas contrariedades tinham reflexos fisiológicos imediatos. Durante o segundo exílio dele, cada vez que tinha uma notícia que significava que não estava à vista a queda da ditadura, ele tinha uma cólica de fígado terrível. O AI-5 provocou a reativação de uma úlcera de duodeno recessiva, que ele tinha havia muito tempo. O AI-5 foi em 13 de dezembro de 1968 e ele morreu em junho de 1969, depois de uma operação dessa úlcera. Foi uma infelicidade, um acidente operatório. Foi o trauma moral pelo que estava acontecendo com o País que o levou à morte.


Estado – Ele morreu e os senhores continuaram pagando o preço, com a censura.


Ruy Mesquita – De fato, por exigência de meu irmão Julio, que se recusou a se autocensurar, fomos o único grande jornal do País que teve censor dentro de sua redação.


Estado – Foi o general Geisel quem retirou a censura?


Ruy Mesquita – Foi, como, aliás, ele havia dito que ia fazer. O plano dele era a abertura lenta, gradual e irrestrita. Faço questão de corrigir uma injustiça que se fez ao general Geisel. Ele era do grupo Castello Branco e nunca concordou com a linha-dura. Ele chegou à presidência decidido a acabar com a tortura, que nenhum dos outros presidentes aprovara, mas não tiveram força para evitar o que se passava nos porões dos DOI-Codi. Não foi institucionalizada a tortura. Tortura institucionalizada no Brasil só se teve na ditadura do Estado Novo, sob o comando de Filinto Müller. O general Geisel sabia que não podia enfrentar a linha-dura frontalmente. Fez a coisa como devia ser feita, em estilo muito parecido com o do general De Gaulle em relação aos revoltosos de Argel que o levaram ao poder e que ele, depois, felizmente para a França, traiu. Desde o primeiro momento, ele nos mandou recados e convocou o Julio, meu irmão, que era o diretor do Estado, para falar sobre os seus planos, que cumpriu rigorosamente. Como prova o final da sua luta contra a tortura: a demissão do ministro do Exército, Sílvio Frota e a remoção do general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército, após a morte do operário Manoel Fiel Filho.


Estado – A revolução fez algum bem aos costumes políticos?


Ruy Mesquita – Eu acho que fez. Embora o programa de erradicação da corrupção tenha sido o rompante do início e depois a corrupção grassou nos governos ditatoriais. A reação da sociedade é outra mentira. Vejo agora, quando saem matérias aí sobre o que foi a marcha de 19 de março, em resposta ao discurso do Jango Goulart, onde ele anunciava seu projeto da república democrática sindicalista, populista. A marcha demonstrou o apoio majoritário da população, confirmado no pior governo em termos de repressão que teve, na eleição durante o governo Medici, quando a Arena teve uma vitória ampla numa eleição perfeitamente limpa. Depois perdeu esmagadoramente também na eleição seguinte, já no governo Geisel, onde o MDB fez uma maioria enorme tanto no Senado como na Câmara dos Deputados.


Isso foi uma demonstração de maturidade do eleitorado, depois de 10 anos de ditadura. O povão aí deu o sinal: ‘estamos por aqui, vamos parar com isso’. Acho que o povo brasileiro aprendeu muito com a ditadura. Aliás, a grande razão da vitória esmagadora do Médici foi o período de prosperidade chamado de Milagre Econômico, quando a economia crescia a taxas em que hoje a gente gostaria que estivesse crescendo. Mas, segundo tudo indica, foi o canto do cisne da economia brasileira. Depois teve a crise do petróleo no governo Geisel, que foi o grande baque e o resto foi degringolando


Estado – O regime militar foi diferente de outras ditaduras?


Ruy Mesquita – A ditadura militar brasileira foi fundamentalmente diferente das outras ditaduras militares surgidas na América Latina. Primeiro, porque foi a única ditadura da história de que tenho conhecimento que limitou os poderes dos ditadores, começando por estabelecer a rotatividade na presidência da República e mantendo o Congresso em funcionamento durante todo o tempo, com duas breves interrupções. Quanto aos crimes praticados nos seus porões, não tiveram o caráter ‘institucional’ que tiveram nas ditaduras argentina e chilena. Foram iguais em gênero, mas nada de parecido em número, pelo menos."