Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Cabe uma inversão na pauta

A reportagem do New York Times que provocou a reação irada do presidente Lula contra o jornalista americano, vem suscitando debates em todas as camadas sociais, especialmente entre os jornalistas. Analisando as opiniões emitidas por vários profissionais de comunicação, percebe-se que o direcionamento do debate foca o tema da censura e da medida autoritária do presidente. É natural que uma categoria profissional reaja desta maneira diante de uma restrição a um colega de profissão, seja ele americano, africano ou asiático. Porém, o que menos interessa neste episódio são os hábitos etílicos do presidente.

Cabe, portanto, uma inversão na pauta para analisar as circunstâncias em que a reportagem está colocada. Em que pesem as falhas do governo protagonizado pelo PT, em vários aspectos, vale ressaltar o grande esforço do presidente e da equipe ministerial para estabelecer um novo posicionamento do Brasil no cenário internacional. Desde que assumiu, Lula vem colocando-se como interlocutor dos países emergentes na tentativa de repactuar o Mercosul, com os olhos voltados principalmente para a Argentina.

No mundo globalizado, qualquer desequilíbrio econômico provoca um efeito-dominó à economia de muitos países. Segurar o Mercosul é fundamental para fortalecer o bloco político-econômico dos países andinos e no centro do continente americano. O governo Lula, na política internacional, tem uma perspectiva de futuro e uma visão ampla de estratégia geopolítica. Não basta olhar o próprio umbigo. Por isso, o Brasil procura dialogar com o mundo, abrindo novas possibilidades de comércio com os países árabes e aproximando-se estrategicamente da China – um dos maiores mercados do mundo – na perspectiva de formar um bloco econômico que tenha condições de dialogar em condições razoáveis com o G-7 e com o FMI.

Este conjunto de ações políticas e econômicas transformaram Lula numa referência internacional e conseguiram evitar, até agora, a concretização da maior e mais importante operação para salvar a economia em crise dos Estados Unidos: a implantação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Da forma que os Estados Unidos querem, a Alca não será implantada facilmente. Já havia uma indisposição do governo Bush com o Brasil quando o acordo para entregar a Base de Alcântara foi suspenso. Fracassados, os EUA abriram um outro flanco ao tributar exageradamente os produtos brasileiros exportados à terra do Tio Sam.

Bravatas oportunistas

O terrorismo norte-americano não se manifesta somente nos bombardeios ao Iraque, na invasão do Afeganistão e nas operações militares na América do Sul sob o pretexto de combater a produção de cocaína. As bombas são, também, midiáticas. Vindo de onde veio, do NYT, a matéria soou como encomendada. Era preciso desmoralizar o chefe de Estado que vem colocando obstáculos à estratégia imperialista dos Estados Unidos. Mais que chamar Lula de bêbado, era necessário atingi-lo no fundo, dizendo que o pai dele era alcoólatra e abusava dos filhos. O jornal mais influente do mundo reduziu a um traste a personalidade política mais emergente da América Latina, que abriu o diálogo com o mundo para, pelo menos, negociar com o FMI com um pouco mais de dignidade, sem que os países miseráveis tenham de dar o sangue para pagar dívidas que nunca acabam.

A expulsão do jornalista americano não abre qualquer precedente para a censura, porque ele vai continuar escrevendo o que o New York Times mandar, de acordo com os interesses imperialistas dos Estados Unidos. O que causa mais preocupação neste episódio não é a expulsão do jornalista, mas a reação contrária de muitas empresas de comunicação que se comportam como internacionalizadas, ou americanizadas. Daqui a pouco, podemos ter no Brasil um posicionamento da mídia semelhante ao que ocorre na Venezuela, onde as próprias empresas de comunicação, controladas pelos Estados Unidos, convocam a população para depor o presidente Hugo Chávez, eleito democraticamente, mas sujeito aos interesses imperialistas no petróleo venezuelano.

O que abre precedente ruim é o fato de oportunistas que sempre estiveram aliados às forças conservadores (da ditadura militar ao liberal-tucanismo) fazerem bravatas em nome da democracia e da liberdade de imprensa.

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Jornalista, São Luís (MA)