A mobilização de 270 policiais de três corporações diferentes e mais o apoio técnico de instituições federais como o Exército e a Receita Federal terminou com a captura e morte de Lázaro Barbosa, mas ainda deixou no ar uma série de indagações sobre a espetacular mobilização de recursos humanos e tecnológicos na caçada a um único criminoso.
Foram 20 dias de um verdadeiro show midiático onde as forças policiais usaram a caçada em Cocalzinho de Goiás, perto de Brasília, para promover a imagem pública do aparato de segurança depois de mais de 20 dias na perseguição a um único criminoso. Paralelamente, emissoras de televisão utilizaram o episódio para mais uma batalha por audiência mostrando que o jornalismo precisa rever suas estratégias editoriais na cobertura de eventos policiais para não ser envolvido em operações de marketing institucional.
O desenrolar da caçada a Lázaro Barbosa, autor de pelo menos cinco assassinatos, mostrou que as quase três semanas de resultados frustrantes não podem ser creditadas apenas à uma suposta ineficiência das polícias civil e militar de Goiás, bem como da Polícia Federal. Está mais ou menos claro que os encarregados da operação não deixariam que ela acabasse num fiasco. Era muito pouco provável que Lázaro saísse vivo, mas havia quase certeza que não lograria escapar porque isto seria muito embaraçoso para a imagem das polícias envolvidas no caso.
O ufanismo do governador de Goiás ao anunciar o fim da caçada deixou clara a preocupação com a promoção da imagem do sistema de segurança pública. Além de afirmar que a polícia brasileira é a melhor do mundo, um evidente exagero, Ronaldo Caiado fez questão de dizer que o criminoso contou com o apoio de várias pessoas, para desfazer a imagem negativa da enorme desproporção entre os 270 caçadores e o caçado.
A operação contou desde o início com uma simbiose entre os policiais e a imprensa. O marketing da eficiência policial somente daria resultados com uma ampla cobertura jornalística, especialmente nos telejornais. Estes por sua vez sabiam que um acontecimento como esta perseguição a um criminoso teria todos os ingredientes de sensacionalismo e emoção para transformar a cobertura num seriado tipo caçada a um serial killer.
Tensão pré-captura
Mas, depois de uma semana, a falta de resultados concretos começou a mudar o humor do público provocando um divórcio entre a expectativa popular por uma tranquilizadora captura rápida e a pretensão governamental de reforçar a imagem pública do aparato repressor ao crime no país.
Os 19 dias de frustrações na busca de Lázaro Barbosa deixaram no ar uma série de perguntas sobre a coordenação entre as diversas corporações policiais envolvidas no episódio. Ficou difícil explicar por que 270 policiais apoiados por três helicópteros, drones e um grande número de viaturas, bem como um sofisticado sistema militar de comunicação por rádio, não tenham conseguido localizar rapidamente um único fugitivo numa região de chácaras, bem longe da densidade florestal preferida por guerrilheiros e bandidos experientes.
Esta dúvida começou a ser postada em vários comentários em redes sociais mostrando a desilusão dos que esperavam resultados rápidos e espetaculares, ao mesmo tempo que os moradores de Cocalzinho de Goiás, o epicentro das buscas, revelavam à imprensa sua frustração com os prejuízos financeiros causados pelas barreiras em estradas e pelo medo da população local.
Os líderes da caçada ficaram diante de uma encruzilhada: minimizar gradualmente a divulgação das ações policiais em Goiás ou promover algum evento espetacular capaz de reativar o interesse público. Na primeira hipótese, uma desidratação do noticiário, levaria a imprensa a esquecer o tema e permitiria uma saída honrosa para quem idealizou a caçada-show com fins midiáticos. Já a segunda possibilidade, que acabou prevalecendo, apoiava-se na morte de Lázaro Barbosa, com a consequente exaltação do feito policial.
O papel da imprensa
A longa expectativa por um desfecho evidenciou, também, um dilema editorial que deveria levar todos nós a refletir sobre o papel do jornalismo na cobertura de ações policiais. Normalmente é a polícia quem pauta o trabalho da imprensa funcionando como fonte primária de dados, fatos e eventos que inevitavelmente integram uma lógica informativa destinada a valorizar o papel das corporações do sistema público de repressão ao crime.
A falta de notícias impactantes durante quase três semanas de caçada deu origem a uma guerra por audiência entre as redes Record e Globo. O programa Cidade Aberta, da Record chegou muito perto dos índices da Globo, no horário matutino até o início da tarde. A emissora líder de audiência sentiu o golpe e reagiu esticando o noticiário sobre a caçada no Jornal do Almoço, mesmo com um noticiário morno, pela ausência de notícias impactantes sobre o caso
No caso Lázaro Barbosa, os repórteres de campo tinham a polícia como única fonte de dados sobre as buscas. A guerra por audiência colocou em segundo plano uma mudança de rotinas em matéria de cobertura policial por meio de um maior equilíbrio na seleção de fontes de informação. A abordagem independente começa a ser praticada na cobertura da violência policial em ações em favelas no Rio de Janeiro, por meio de repórteres e cinegrafistas que passaram a dar maior visibilidade à versão de moradores e testemunhas, em vez de ouvir apenas as fontes oficiais. Passamos assim a ter uma visão mais equilibrada de episódios dramáticos como o massacre do Jacarezinho, em 5 de maio, quando foram mortas 29 pessoas numa operação da polícia civil do Rio de Janeiro.
Noticiário versus marketing institucional
O fim do monopólio da polícia na construção do discurso sobre eventos criminais é uma tendência que também ganhou corpo nos Estados Unidos, depois do assassinato de George Floyd Junior, em Minneapolis, em maio de 2020. Várias organizações de pesquisa sobre práticas jornalísticas, como o Instituto Poynter, na Florida, e a Fundação Nieman, da Universidade Harvard, também nos Estados Unidos, têm publicado estudos sobre novas estratégias editoriais da imprensa norte-americana na cobertura policial.
Todos os trabalhos destacam a necessidade de o jornalismo rever a rotina de privilegiar a versão da polícia na cobertura de eventos criminais. Um dos argumentos é que o sistema de segurança tenta, cada vez mais, usar a imprensa para promover sua imagem pública, o que vai contra a missão da imprensa que é a de informar e não fazer marketing institucional.
Ao dar voz a moradores e testemunhas, o jornalismo criou uma visão alternativa à da polícia em eventos criminais impactantes. Esta diversificação acabou gerando situações delicadas pois, em muitos casos, a versão oficial se mostrou falha, contribuindo para a redução da credibilidade da polícia. Uma parcela considerável dos jornalistas já se preocupa, aqui e nos Estados Unidos, com esta embaraçosa associação a narrativas pouco convincentes e começa a dar os primeiros passos para mudar os paradigmas em matéria de noticiário policial.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC, professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.