‘IMPRENSA não é tribunal. Quando um veículo de comunicação se arvora nessa condição incorre em risco de cometer injustiças sérias, confundir o público e perturbar o andamento da Justiça.
A Folha trilhou este perigoso caminho ao longo da semana ao designar José Aparecido Nunes Pires como ‘vazador’ ou ‘responsável pelo vazamento’ do dossiê sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, antes mesmo de ele ter sido indiciado pelo crime de violação de sigilo funcional.
O ‘Manual da Redação’ deste jornal é claríssimo, no verbete ‘acusações criminais’ (página 155), ao determinar: ‘Até que seja condenada em definitivo pela Justiça, a pessoa deve ser tratada como suspeita, acusada, ré ou condenada em determinada instância. Esse procedimento visa evitar prejulgamentos e preservar a imagem de personagens do noticiário’.
Essa resolução tem sido quase sempre estritamente cumprida desde a primeira edição do ‘Manual’, há quase 25 anos. No passado, nem réus confessos de homicídio foram chamados de assassinos pelo jornal antes do seu julgamento. Desobedecê-la agora é um precedente temerário.
Ao longo da semana, registrei muitas vezes na crítica interna à Redação meu desassossego com o assunto. Requisitei formalmente à Secretaria de Redação que explicasse as razões do procedimento.
A resposta foi que o jornal ‘tem certeza’ de sua apuração. Para mim, essa justificativa não é aceitável. Decisões sobre culpabilidade de acusados de crimes não se tomam com base em ‘certezas’ de indivíduos.
O comportamento do jornal é particularmente incompreensível por ser concomitante com sua posição editorial exemplar no caso da prisão dos acusados pela morte da menina Isabella.
Em 9 de maio, a Folha definiu assim o que chamou de ‘humilhação’ a que foram expostos o pai e a madrasta da garota: ‘punição cruel e indelével, impingida antes e a despeito do pronunciamento da única fonte legítima para atribuir culpa neste caso, o Tribunal do Júri.’
Se o jornal acusa a Justiça de prejulgamento do casal, o que deve fazer em relação à sua própria atitude de resolver, porque tem ‘certeza’ de sua apuração, que José Aparecido Nunes Pires é culpado antes do indiciamento?
Uma tentativa para compreender essa evidente contradição poderia ser supor que haja diferença qualitativa de tratamento para acusados de crimes ‘violentos’ e acusados de crimes ‘políticos’.
Não creio que essa distinção seja cabível. Ao contrário até: crimes cometidos por motivação política deveriam ser tratados de maneira ainda mais cuidadosa pelo jornalismo, devido aos danos institucionais que podem resultar deles e da maneira como a sociedade lida com eles.
As relações entre jornalistas e agentes do Ministério Público e da Polícia Federal em casos que envolvem política são extraordinariamente complexas e freqüentemente deletérias. Vazamentos seletivos de informações têm sido feitos por motivações diversas: da busca da notoriedade à promoção de ideologias, partidos ou grupos corporativos com a conseqüência, às vezes, de vidas e reputações arrasadas injustamente.’
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‘A memória da ponte’, copyright Folha de S. Paulo, 18/5/08.
‘O ombudsman recebeu 23 questionamentos sobre a cobertura da inauguração da ponte Octavio Frias de Oliveira no domingo passado.
Todas para saber por que o jornal, que três anos antes havia publicado editorial para condenar a obra, agora a noticiava sem nenhuma crítica à construção.
Nas mensagens, era possível perceber motivações diversas. Havia desde pessoas claramente sinceras no seu desejo de esclarecer o que lhes parecia uma contradição até indisfarçáveis articulações de cunho político-partidário.
A Folha teria se poupado desse desgaste previsível se tivesse publicado na página que registrou a solenidade uma simples retranca para lembrar sua posição sobre a obra no passado e agora.
Instada pelo ombudsman, a Secretaria de Redação enviou a seguinte nota: ‘A Folha considerou e considera que a obra, dispendiosa, não é prioritária. Essa era a opinião pessoal do próprio sr. Octavio Frias de Oliveira. Hoje, a ponte é uma realidade. Foi completada, aliás, num período em que as finanças da prefeitura melhoraram. Essas considerações não têm relação com o fato de, agora, o poder público homenagear o sr. Frias batizando a ponte com seu nome. Seria descabido que a Folha ou a família Frias rejeitassem uma homenagem a seu líder’.
Parece-me uma explicação justificável. Deveria ter constado do noticiário de domingo. Assim como também poderia ter sido lembrado pela reportagem que a ex-prefeita Marta Suplicy, responsável pelo início do projeto, não foi convidada para a inauguração.’
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‘Frase de leitor’, copyright Folha de S. Paulo, 18/5/08.
‘A Folha deve explicação aos leitores sobre o motivo da mudança radical na avaliação da nova ponte de São Paulo que passou de ‘projeto extravagante’ a ‘símbolo de São Paulo’
MÁRCIA MEIRELES
PARA LER
‘Ética e Meios de Comunicação’, de Niceto Blazquez, trad. Rodrigo Contreras, Ed. Paulinas, 1999 – o mais completo compêndio sobre questões éticas no jornalismo (a partir de R$ 22,50)
‘O Jornalista e o Assassino’, Janet Malcolm, trad. Tomás Rosa Bueno, Companhia das Letras, 1990 – ótima análise sobre as complexas relações entre jornalistas e envolvidos em crimes (R$ 38 e em sites que negociam usados)
PARA VER
‘Ausência de Malícia’, de Sidney Pollack, com Paul Newman e Sally Field, 1981 – excelente filme sobre como jornalistas podem ser usados por promotores e policiais (a partir de R$ 39 e em sites que negociam produtos usados)
ASSUNTOS MAIS COMENTADOS DA SEMANA
1. Inauguração da ponte estaiada
2. Questão racial
3. Caso Isabella
ONDE O JORNAL FOI BEM
Copa 58
Interessante série de reportagens revive primeira grande conquista do futebol brasileiro
Região Norte
Boas as reportagens sobre os problemas no Pará no domingo
E ONDE FOI MAL
Ex-ministro
Ministério Público denuncia dois governadores no poder e um ex-ministro; manchete de página na quarta-feira destaca só o ex-ministro
Caso Paulinho
Notícia devassa intimidade e põe em risco segurança de quem vendeu casa a mulher do deputado ao revelar seu nome e endereço
Alstom/Metrô
Embora tenha melhorado, cobertura do caso continua aquém da de concorrentes e da tradição investigativa da Folha.
Campeonato
Jogo com resultado raríssimo (5 a 5) recebe nota com menos linhas do que gols; clássico com Maracanã vazio ganha cobertura burocrática.’