Murilo Ramos acompanha o setor das comunicações brasileiras desde a época da ditadura militar. Professor da Universidade de Brasília (UnB) já no início dos anos 1980, integrou o time de grandes pesquisadores daquela universidade formado por Salomão Amorim, Marco Antônio Dias, Luiz Gonzaga Motta e Venício Lima que tornou-se uma referência na discussão sobre as políticas nacionais de comunicação no período de redemocratização, em especial na Constituinte.
À frente do Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB (Lapcom), Ramos consolidou-se como um analista de um vasto escopo de temas, que vai da TV e do rádio às novas tecnologias. Ao traçar perspectivas para o ano de 2009, nem a vasta experiência e o bom trânsito em diversos ambientes, o que lhe garante informações qualificadas, fazem o agora professor aposentado ‘cravar’ previsões. Ao contrário, Murilo pinta um cenário movediço e fluido, causado pela intensidade dos processos de mudança, que colocam mais perguntas do que respostas.
As incertezas atingem principalmente a radiodifusão e os serviços de TV paga, recém-entrantes no mundo digital. Os últimos, em especial, são a atual fronteira da batalha da convergência, manifestada na revisão da legislação em discussão pela tramitação do Projeto de Lei 29/2007. Mas neste caso, Ramos vê pouca chance de progresso com a saída de seu principal patrocinador, o deputado Jorge Bittar (PT-RJ), do Parlamento.
A TV aberta, se não deve passar por uma reformulação em seu marco legal, corre para um futuro incerto por conta dos reposicionamentos provocados pela migração para o sistema digital e pelas estratégias de alguns atores, em especial a Rede Record. Já as telecomunicações apresentam tendências mais visíveis a partir da reestruturação da telefonia fixa e da compra da Brasil Telecom pela Oi realizadas neste ano.
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O que deve movimentar a agenda da radiodifusão brasileira em 2009?
Murilo Ramos – Pensar perspectivas para 2009 na comunicação social, na radiodifusão em especial, coloca mais perguntas do que respostas, diferentemente das telecomunicações. No Brasil, há uma incógnita sobre o futuro da TV aberta. Na transição para a TV digital, o caso dos Estados Unidos é um exemplo importante para considerarmos no Brasil. Vale a pena mencionar que uma das primeiras decisões de [Barack] Obama será negociar com o Congresso a prorrogação do prazo do apagão analógico, marcado para 15 de fevereiro.
Isso nos ensina as dificuldades que esta transição no modelo comercial nos traz em relação ao seu ritmo. Uma amostra delas é a indefinição nos dados referentes à penetração e ao número de domicílios recebendo o sinal digital de TV. As associações industriais têm apresentado dados diferentes. No caso de Brasília, por exemplo, o cronograma de transição irá atrasar porque o governo encomendou uma antena-monumento ao escritório do Oscar Niemeyer. A evolução do processo no Brasil reforça a dificuldade vista nos EUA, e isso pode ser fatal do ponto de vista do modelo de negócios que está sendo desenvolvido.
E na TV paga, prevalece também o quadro de incertezas em relação à regulação deste setor, que se mostra central nas estratégias de expansão de mercado e convergência de serviços adotadas pelas teles?
M.R. – A TV paga, encarnada hoje no PL-29 e apensados e seus substitutivos, também está mais no campo das indefinições do que das respostas. Aquilo que parecia natural, o ano terminando com a votação do projeto na CCTCI [Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática], acabou com a remessa do projeto à CDC [Comissão de Defesa do Consumidor]. O relator, Jorge Bittar (PT-RJ), assumiu uma secretaria no município do Rio de Janeiro, o que embaralha a discussão. Sem o PL-29, não se resolve quem pode ofertar o serviço nem os condicionantes do mercado. Em relação ao progresso dele este ano no Congresso, se eu fosse fazer uma previsão, correndo o risco de estar errado, eu diria que nada acontecerá e o impasse vai persistir. O relatório que será produzido na CDC sairá expurgado de tudo aquilo referente ao fomento. Resta saber se, ao voltar para a CCTCI, onde há um comprometimento com os trabalhos do Jorge Bittar, deputados como Pinheiro [Walter Pinheiro, PT-BA] e Semeghini [Júlio Semeghini, PSDB-SP], que estavam comprometidos com trabalho de Bittar, patrocinarão a aprovação dele.
A grande questão é resolver a polêmica entre distribuição e fomento. Como na distribuição os interessados já estão se ajustando, poderemos terminar 2009 sem que nada aconteça nesta área. A Oi já obteve as outorgas da Way TV em Minas Gerais (a partir de uma brecha da legislação que permite a oferta de serviço de cabodifusão por teles em locais onde não haja interesse de mais nenhuma operadora), a Telefónica e a Embratel lançaram sistemas de DTH. A partir desta acomodação na distribuição, ouso dizer que acabaremos o ano sem uma nova lei para a TV por assinatura.
A dificuldade de realizar reformas regulatórias parciais não traz à tona a necessidade de um novo marco regulatório para a área?
M.R. – A atualização do marco regulatório é outra incógnita. De 1994 para cá, houve quatro tentativas de se iniciar um processo de ‘re-regulamentar’ a radiodifusão. Se for por iniciativa do Legislativo, isso não acontecerá. Há o processo da Conferência Nacional de Comunicação, gestado há dois anos, mas falta a certeza de que o poder Executivo convoque. Apesar dos últimos movimentos, acredito que a conferência sairá pelo Legislativo pela demora do governo federal em convocar de fato este processo. Aí, se pode pensar para no primeiro ano do mandato do novo presidente [2011-2014] um projeto neste sentido, pois 2010 é um ano improvável para este tipo de mudança.
Como você vê as perspectivas para a comunicação pública, em especial para a evolução da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), para este ano?
M.R. – A criação da EBC – que começou errado, como uma tentativa governamental de criar um antídoto seu ao poderio da radiodifusão comercial, e que acabou convergindo com o que vinha sendo feito pelo Ministério da Cultura – significou um embrião de uma rede pública a partir da fusão da TVE Rede Brasil e da Radiobrás, sendo a maior novidade na área desde a Lei do Cabo. Hoje, a TV Brasil é uma novidade, ela tem muito a fazer para se afirmar, mas conceitualmente ela está bem construída neste momento. Inclusive na disposição de se tornar uma rede e de se somar às emissoras estatais para compartilhar uma infra-estrutura comum para transmissão no sinal digital, o que tende a ser uma perspectiva de política setorial em 2009. É fundamental que, tanto do ponto de vista da programação quanto do financiamento e da estruturação, a ECB se consolide para que não sofra descontinuidade ou reversão com um novo governo.
Mas você avalia que há espaço para um debate de fato sobre a regulamentação da complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal, prevista no Artigo 223 da Constituição Federal?
M.R. – Esta é outra questão importante que a EBC trouxe e que, do ponto de vista regulatório, vai ser cada vez mais evidente em 2009: a necessidade de debater que complementaridade é esta entre os sistemas público, privado e estatal. O que é fundamental nisso, hoje, é aprofundar o debate conceitual sobre o que vem a ser cada um destes sistemas. Na minha opinião, não existe sistema privado de radiodifusão; o que existe é, por concessão, o Estado autorizar o privado a explorar comercialmente o serviço público de TV e rádio, utilizando, para isso, o instituto da concessão, permissão e autorização.
Esta suposta complementaridade acabou sendo armadilha, porque aparenta ter um sistema privado. Quando se trata de outorga de concessão e permissão, não existe. Já na autorização, pode-se admiti-lo, uma vez que ela difere dos demais institutos em relação ao equilíbrio entre direitos e deveres. Advogando a existência do sistema privado, os radiodifusores comerciais querem a máxima segurança jurídica com máxima liberdade de mercado. Vai se avançar mais na discussão, mas ela só poderá ser completada no âmbito da conferência [Nacional de Comunicação] e de uma revisão da legislação.
Esta liberdade de que gozam os radiodifusores, no cenário de desregulação do setor, também foi uma polêmica colocada nas diversas discussões sobre o uso das concessões de rádio e TV, que vem sendo puxadas com alguma regularidade já desde 2007. Elas deve prosseguir em 2009?
M.R. – De fato, a partir da migração digital, do término do prazo de outorga das principais concessionárias em 2007 e do trabalho iniciado em 2007 pela Sub-comissão de Outorgas da CCTCI, esta discussão ganhou visibilidade, devendo continuar e ser aprofundada. O meu entendimento é que a insegurança gerada pela transição digital para a radiodifusão e a pressão da sociedade por regras mais claras para as outorgas vai fazer com que, seja na conferência ou em uma nova lei, o próprio empresariado da radiodifusão se preocupe com a existência de uma nova legislação que substitua o Código Brasileiro de Telecomunicações.
Neste contexto, como deve ficar o mercado de TV aberta em 2009?
M.R. – Ele deverá sofrer mudanças com o declínio da Globo e a ascensão da Record. Isso vem ocorrendo e já vem sendo sentido há mais de cinco anos, quando a rede de Edir Macedo não tinha posição tão central quanto tinha antes. Isso não sinaliza mudança estética ou de qualidade, mas uma alteração no mercado, com a Record com programação clonada da Globo com mais apelo junto às classes C e D, uma vez que os públicos A e B estão migrando para a TV paga e deverão também se informar cada vez mais por meio da banda larga. A Band, com o CQC e com a recriação da Escolinha Muito Louca do Sidney Magal mostra que a vulnerabilidade da Globo vai ser acentuada. Não dá para prever quando isso irá mudar, mas imaginar que, em um número de anos, a Globo possa perder a liderança não é mais delírio e o processo vai continuar em 2009.
E não sei se isso [a modificação do mercado de TV aberta] converge para a alta definição, porque o que está acontecendo hoje tem pouco a ver com o HD [High Definition], então não dá para afirmar que ela será um diferencial. A portabilidade e a mobilidade colocam-se em um futuro mais adiante, e não sei se estas estão mais próximas da TV paga do que da TV aberta. Elas implicam em formatos muito diferentes da grade contínua da TV aberta.
E na área das telecomunicações, 2009 terá tantas incógnitas?
M.R. – As questões são menos difíceis de prever. Os órgãos bem-intencionados de defesa da concorrência, CADE [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] e a SEAE [Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda], vão se deparar com a análise da compra da Brasil Telecom pela Oi. Neste ano, teremos também um rearranjo da relação fixo-móvel, com as operadoras de telefonia fixa aproximando-se das móveis: a Oi da Vivo e a Telefónica da TIM. Haverá uma reacomodação oligopólica dos mercados das telecomunicações.
Nesta perspectiva, é inquietante a fragilidade crescente da Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações]. Não dá para admitir um órgão regulador de um setor essencialmente privado que passou os últimos seis anos com o Conselho Diretor funcionando sem um ou dois membros. Isso vai fragilizando o órgão. Com o mercado – oligopólio por definição – construindo seus caminhos de concentração, seria necessária uma ação forte e autônoma do órgão regulador, mas a agência está fragilizada. Politicamente, porque a influência do governo é muito maior do que devia. Outro problema é o fato do conselho estar a mercê de presidentes que têm mandato de um ano, sem falar na ameaça constante de mudanças com projetos que alteram o funcionamento das agências no Congresso.
Discute-se muito a morte da telefonia fixa, hoje o único serviço público de telecomunicações. Este debate tende a crescer em 2009?
M.R. – É possível prever um movimento de fragilização da idéia de serviço público nas telecomunicações, hoje atrelada à altamente questionada telefonia fixa comutada. O que é conhecido tradicionalmente como serviço público está sendo empurrado ao ostracismo pela apropriação feita pelos interesses comerciais da evolução tecnológica, uma vez que interessa a ele não ter condicionantes, pressões e obrigações. Fala-se em banda larga pública. Para mim, a preocupação é pensar a dimensão prestacional do serviço, ou seja, garantir que haja um serviço público que chegue ao cidadão, seja uma nova roupagem do SCM [Serviço de Comunicação Multimídia] ou uma espécie de serviço de comunicação pessoal. Em relação a isso, a fragilidade da Anatel e do Ministério das Comunicações no campo de formulação de políticas nesta área é preocupante.
Se a telefonia fixa está em declínio, as tecnologias móveis têm ganhado destaque, não?
M.R. – Sim. A portabilidade vai ser uma questão cada vez mais presente nos debates da área. Vai gerar preços e tarifas mais baratos? Não sei. Acima de tudo, as tecnologias sem fio estarão na ponta da agenda político-regulatória, com 3G, Wi-Max e MMDS. Isso porque a expansão da banda larga, neste momento, vai se dar mais pela rede sem fio do que pela rede física, uma vez que o investimento para a implantação de redes físicas de alta capacidade é muito maior. Mas também é algo mais indefinido, porque estas redes sem fio possibilitarão distribuir todo e qualquer tipo de conteúdo, inclusive audiovisual. Com o avanço deste processo, fica cada vez menos claro quais serão os serviços ofertados e os terminais usados.
As normas que devem disciplinar este quadro estão previstas no Plano Geral de Atualização da Regulamentação em Telecomunicações (PGR). Ele deve gerar mudanças já este ano?
M.R. – O PGR foi um subproduto interessante do processo de compra da Brasil Telecom pela Oi. Obrigou a Anatel a produzir um documento estratégico. Por mais deficiências que ele tenha, é louvável o esforço que a agência fez. O plano organizou o mapa. Com esta Anatel, ele não terá conseqüência em 2009 e pode morrer. Mesmo o PGMC [Plano Geral de Metas de Competição], com esta situação da Anatel, pode não ser encaminhado, pois pra sair é preciso liderança, e ela não existe nem pela Anatel, nem pelo Minicom.
Como você vê a atuação do governo federal neste cenário?
M.R. – Sinto, hoje, que o governo federal não está preparado para enfrentar estes desafios. Como eu disse, a capacidade formuladora do Minicom é muito baixa e a Anatel está fragilizada. O ministério está despido da capacidade de formulação, seja por incapacidade, seja por indisposição. Há várias diretrizes interessantes no Decreto 4.733/2003 [que estabelece diretrizes para as políticas voltadas à área de telecomunicações], mas elas foram atropeladas pela viabilização de um negócio entre duas operadoras.
E aí há compensações que vêm via o CGI-Br [Comitê Gestor da Internet do Brasil], o MCT [Ministério da Ciência e Tecnologia] e da área de Tecnologia da Informação, amparadas pela discussão da inclusão digital. Mas isso é insuficiente para dar conta de uma política de fato para uma infra-estrutura nacional de informação. Exemplo disso é o abandono e o não-uso dos recursos do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações].
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Do Observatório do Direito à Comunicação