Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Certidão de idiotice

A idiotice americana levou dois trancos no início da semana: a suspensão do Projeto de Busca por Inteligência Extraterrestre, em atividade desde 1960 na Califórnia, e a divulgação oficial da certidão de nascimento de Barack Obama, a prova cabal de que ele, ao contrário do que apregoam os birthers (de birth, nascer em inglês), fanáticos patrulheiros da “verdadeira” nacionalidade do presidente, não nasceu no Quênia, e sim no Havaí, sendo portanto um americano da gema.

Recomendo manter o champanhe na geladeira. Como o patético frisson em torno das núpcias reais de William & Kate demonstrou ad nauseam, a humanidade não foi beneficiada com um upgrade mental nos últimos tempos e por isso é de se esperar que os ufólatras, mesmo sem assistência técnica, continuem acreditando em discos voadores e ETs e os birthers não desistam de convencer o eleitorado de que Obama não pode presidir o país por ser “estrangeiro”.

Nenhuma pesquisa ainda foi feita para se apurar quantos dos ufólatras acreditam que Obama nasceu na África e é muçulmano, nem quantos dos birthers creem em discos voadores, no criacionismo e na tese de que a Terra não é redonda, mas plana. São muitos, suspeito. P. T. Barnum, o midas do picadeiro, cantou a pedra há mais de um século: “Nasce um trouxa a cada minuto na América”. De parto natural ou induzido, acrescento. Trouxas que aceitam bovinamente o que lhes vendem os charlatães da verdade (ou truthers, no jargão atual) e os proxenetas do que David Aaronovitch batizou de vodoo history.

Velhaco de truz

Há uma ligeira diferença entre os dois. Os truthers (de truth, verdade em inglês) duvidam de tudo, sobretudo das intenções, ações e versões do governo, em contraste com os que embarcam em todas as teorias conspiratórias processadas pelos “macumbeiros da história”. Tanto podem ser conservadores (ou de “direita”) como liberais (ou de “esquerda”). Os birthers são, sem exceção, truthers de direita. Os que até hoje acreditam que o atentado de 11 de setembro de 2001 foi bolado e executado pelo governo Bush são truthers de esquerda¸ assim como os “Trig truthers”, que se lambusaram com a fofoca de que Trig, aquele menino com síndrome de Down, não é filho de Sarah Palin.

Entre os que nunca se convenceram de que a Máfia e os anticastristas de Miami nada tiveram a ver com a morte de John Kennedy e o suicídio de Marilyn Monroe havia paranoicos das duas tribos, com destaque para o catedrático em história vodu, o cineasta Oliver Stone. O jornalista canadense Jonathan Kay está lançando um estudo sobre a inclinação dos americanos a acreditar em boatos e balelas que deixam mal os políticos e as celebridades que odeiam. Among the Truthers: A Journey Through America’s Growing Conspiracy Underground (Harper, 368 págs.) nos põe de fato “no meio dos truthers” e nos conduz a uma viagem pelo submundo, em franca expansão, das teorias conspiratórias, passando, inevitavelmente, pelos truthers do 11 de Setembro (cerca de um quinto do eleitorado democrata chegou a acreditar que o Pentágono não fora atingido por um avião sequestrado por terroristas, mas por um míssil disparado por militares americanos), e reservando um merecido destaque para os birthers, os atuais campeões da conspirataria.

Freud, lembra Kay, citou Hamlet como um clássico do complexo de Édipo, em A Interpretação dos Sonhos, e quando se descobriu que a peça não fora escrita depois da morte do pai de Shakespeare, apegou-se sem pestanejar à teoria conspiratória segundo a qual o 17º Barão de Oxford havia escrito diversas obras atribuídas a Shakespeare. Estranha a reação de Freud; não ratificou sua tese e ainda passou por leviano e oportunista.

Leviano e oportunista é o mínimo de que podemos tachar o milionário Donald Trump, o mais estridente e onipresente birther da atualidade. Já em campanha para ser o candidato republicano à sucessão de Obama, nas eleições do ano que vem, não rejeita uma aleivosia contra o presidente que cruze por sua frente. É um bufão, um Berlusconi do Queens, tão cafona quanto o italiano, a cujo bullying Obama não deveria ter dado a menor bola, segundo alguns analistas. A menos que faça parte da estratégia da Casa Branca inflar a candidatura de Trump e expô-lo ao ridículo. Eis mais uma teoria conspiratória, realimentada pela divulgação da certidão de nascimento do presidente.

Segundo outra teoria, Obama e os democratas teriam inventado e articulado o birtherismo desde o início, como parte de uma maquiavélica campanha para expor os republicanos como uma falange de lunáticos. O ex-superego de Bush Karl Rove é um dos que pensam assim, se não foi ele próprio, mestre em velhacarias do gênero, quem pôs essa teoria em circulação.

Olhos azuis

A campanha difamatória não parou nem promete parar, para vergonha dos americanos racionais e do bem. Confrontado com a certidão que tanto cobrou nas últimas semanas, Trump não perdeu a pose e, num passe de mágica, transmudou-se em schooler (de school, escola em inglês), que é como estão chamando os que exigem de Obama toda sua documentação escolar, para “dirimir qualquer dúvida” sobre sua carreira universitária. Teste de paternidade ainda não lhe pediram. Para provar que ele é pai de Natasha e Malia, não, mas para confirmar se ele é filho legítimo de Ann e Barack Obama Sr., sim. Se a Casa Branca cair na esparrela de providenciar um exame de DNA para fechar a questão, vão inventar que o resultado do exame foi forjado, como, aliás, já estão dizendo da certidão de nascimento.

Reduzir tudo isso a um jogo sujo eleitoreiro é subestimar as pulsões xenófobas e racistas de uma parte da população americana. Os birthers, no fundo, pregam uma espécie de “pureza da raça” americana, um arianismo ianque. Em alguns Estados já existem leis exigindo que os candidatos a governador sejam filhos de pais e mães nascidos em território americano. Se Obama fosse branco e de olhos azuis, só estaria hoje se ocupando da crise econômica e das guerras que herdou do antecessor.

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Jornalista