Numa noite quente de março deste conturbado 2016 brasileiro, rememorei com alunos do curso de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) uma experiência profissional que tive em fevereiro de 1992 – também um momento político de grande ebulição no país e que resultaria no impeachment do presidente da República dali a oito meses e 19 dias.
No dia 13 de fevereiro daquele ano, assinei uma matéria na Folha de S.Paulo que me daria certa projeção profissional na época, mas renderia um dilema ético até hoje mal resolvido para mim. E foi o dilema ético que serviu de ponto de partida para o relato que fiz para os alunos da disciplina de… ética da ECA.
Em média, meus ouvintes eram jovens entre 18 e 20 anos, no segundo ano do curso de jornalismo e loucos por histórias de quem passou parte da vida atuando como repórter. A maioria não tinha nem nascido em 1992 e só ouviu falar de Fernando Collor de Mello na escola ou em conversas animadas sobre política em família, nas quais tios e primos mais velhos falavam dos caras-pintadas e do dia no qual os brasileiros foram para a rua de preto, contrariando uma convocação do então presidente para que todos usassem verde e amarelo.
O relato dessas experiências na reportagem faz os olhos de quem quer ser jornalista ganhar aquele brilho intenso e o coração de quem viveu os fatos suspirar de saudade. Eu vivo suspirando, não nego.
Primeira página
Publicada na página 5 do caderno Brasil da Folha, como se chamava antes o atual caderno Poder, a matéria recebeu o título “Lixo da casa da Dinda mostra a segurança frágil de Collor” e o subtítulo “Documentos reservados e bilhetes pessoais são achados entre restos de comida”. Para meu prestígio, teve chamada e assinatura na primeira página do jornal.
Eu estava com 27 anos e me senti, admito, como se tivesse levado para casa o Prêmio Pulitzer na categoria Melhor Reportagem. Não era para tanto, reconheço.
A matéria deu um bafafá danado e gerou reações de diferentes lados. No dia seguinte, 14 de fevereiro, a Folha publicou a segunda parte da minha reportagem. Naquele mesmo dia, na mesma Folha, na página 3, saiu um artigo do presidente Fernando Collor de Mello. Para mim, foi uma grande sorte (jornalista também precisa de um pouco de sorte). Eu já tinha lido aquele artigo. Ele estava aos pedaços no lixo da Casa da Dinda, com post-it colado em um dos fragmentos indicando que se tratava da 14ª versão de um texto escrito pela assessoria diplomática do presidente.
Claro que aproveitei a sorte na minha matéria daquele dia. “Artigo de Collor estava no lixo da Dinda”, dizia o título. O subtítulo não deixava dúvidas: “A Folha conhece o texto que publica hoje desde a última sexta-feira, quando o achou na casa do presidente”.
Pode não parecer um fato relevante, mas a sequência de reportagens expôs a fragilidade do esquema de segurança que prometia garantir a integridade física do ocupante do Palácio do Planalto, incluindo o endereço no qual o político e sua família preferiram morar durante o mandato presidencial. Eles optaram por permanecer na Dinda, casa situada no setor de mansões do Lago Norte e que pertencia ao clã Collor de Mello desde os anos 1960.
Enquanto revirava o conteúdo escatológico do lixo presidencial, achei, entre outras joias da intimidade do poder, a escala de plantão dos agentes encarregados da segurança de Collor, com codinomes e senhas para entrar na casa da família, além de extrato bancário de uma conta que a primeira-dama, Rosane Collor, tinha na Caixa Econômica Federal, entre outras curiosidades.
“Só não sei como conseguiram separar o repórter do lixo depois que estavam misturados”, reagiu o coronel Darke Nunes de Figueiredo, chefe da segurança do Palácio do Planalto, em entrevista rápida aos setoristas do palácio. A declaração desrespeitosa gerou notas de repúdio ao militar e de apoio ao meu trabalho divulgadas pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e pelo Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal.
Serviço à sociedade
Ao longo daquela semana, passei de autora a personagem de matérias. “A inteligência do coronel grosseirão não lhe permitiu reconhecer que a repórter realizou um relevante serviço público – o de apontar falhas na segurança do presidente”, me defendeu em texto de duas colunas a revista Veja. “Segurança que, sob a responsabilidade do general Agenor (Homem de Carvalho, chefe do Gabinete Militar do Presidente) e com a colaboração do coronel Darke, era um verdadeiro lixo.”
Darke foi demitido do cargo, mas continuou próximo a Fernando Collor, mesmo após o processo de impeachment que o levou a renunciar à presidência, em 2 de outubro de 1992. Promovido a general, foi chefe do Estado Maior do Exército e fundou em 2011 a Associação Centro de Memória Presidente Fernando Collor de Mello.
Além do afastamento do então coronel Dark da função, a minha reportagem ajudou a reforçar a necessidade de mudanças na rotina de Collor, que já havia sofrido uma tentativa de atentado por um desempregado que buscara atingi-lo com uma faca.
As solenidades de subida e descida da rampa do Planalto foram suspensas e as corridas nos arredores da Dinda, espetáculo protagonizado pelo então presidente, que gostava de se deixar acompanhar por populares e jornalistas – eu, inclusive –, deixaram o ambiente público para serem praticadas em espaços privados.
Esses fatos são hoje parte de uma história que já vai longe e já eram de conhecimento público. Mas o que eu contei para os alunos da ECA, no início de 2016, até hoje só tinha confidenciado a amigos próximos e familiares. Sobre isso eu nunca falei. Trata-se das razões que me levaram a chafurdar no lixo da casa Dinda. Por que eu fiz isso? O que leva uma pessoa a lidar com algo tão nojento e sujo para escrever uma reportagem? Que valores estão em jogo nesse caso? O que é certo fazer? O que é errado?
O dilema ético está sempre presente no dia a dia da nossa profissão. E, no meu caso com essa história de 1992, mesmo passados anos, a dúvida ética ainda convive comigo. O caminho que poderia ser visto por mim como o mais apropriado, para outros poderia ser considerado somente o mais fácil.
Falando com aqueles jovens estudantes, vi que a minha dúvida seria interessante também para eles. Os dilemas que vivi durante aquela apuração poderiam ser úteis na formação deles. Para explicar para a classe de olhos atentos a gênese da matéria, eu precisei contar o que estava acontecendo no Brasil nos idos de fevereiro de 1992.
Tive que voltar no tempo, puxar pela memória e buscar fatos que já não lembrava tão bem. Claro, usei um pouco da tecnologia do Google para me ajudar na precisão de datas e acontecimentos.
Em 1992, os boatos eram avassaladores e geravam sobe e desce intenso nas bolsas de valores em operação em São Paulo e no Rio de Janeiro (atualmente, o mercado financeiro funciona apenas na capital paulista). Foram vítimas da central de boatos a atriz Claudia Raia e a cantora Fafá de Belém, ambas apontadas como portadoras do vírus HIV.
Redes de fofocas
Para Claudia Raia o boato foi tão devastador que, procurando enterrá-lo de vez, ela fez um teste e mostrou o resultado numa entrevista coletiva. Ela não tinha Aids, uma doença tida naqueles anos como uma sentença de morte irreversível.
O presidente Collor também caiu na rede das fofocas. Teria a mesma doença que Claudia Raia e Fafá de Belém. Segundo os boatos, o presidente teria tido um caso amoroso com Claudia Raia e, por isso, teria se contaminado também. O suposto diagnóstico justificaria o emagrecimento repentino do chefe de Estado, que perdera 12 quilos em poucos meses e estava com o rosto cadavérico.
O que intensificou o falatório foi o fato de ele faltar um dia ao trabalho no Palácio do Planalto. Collor costumava esbanjar saúde e expor sua disposição física em corridas pelo solo plano do cerrado. Era praticamente um Iron Man. Daí a inquietação dos fuxiqueiros. Estaria ele doente?
Nas reuniões de pauta, a “doença misteriosa de Collor” sempre surgia. E novos boatos eram compartilhados entre os repórteres da sucursal de Brasília da Folha e, provavelmente, em todas as outras redações dos grandes jornais brasileiros.
O diz que diz que sobre a “doença fatal” do presidente era tão forte que, dois meses antes de eu me embrenhar no lixo oficial, a repórter Sônia Carneiro, da Rádio Jornal do Brasil, perguntou durante uma entrevista coletiva com Collor, e sem floreios, se ele estava com Aids. Na ocasião, Collor disse que ficava feliz com as demonstrações de preocupação com sua saúde e respondeu que estava mais magro por causa das “inúmeras atividades”.
A redação da Folha em Brasília vivia dias de nervosismo e excitação. Eu me lembro bem do cenário: cadeiras quebradas, mesas cinza de ferro e um aquário com ar condicionado mais forte onde ficavam não mais que dez computadores que atendiam à demanda da redação. A gente fazia fila para poder escrever as matérias e mandá-las para a sede em São Paulo.
Naquele fevereiro de 1992 eu contabilizava quatro meses na Folha. Já tinha trabalhado no Jornal de Brasília e depois no Estado de S. Paulo. Após a eleição que catapultou Collor ao Planalto, embarquei para uma temporada na Inglaterra, onde trabalhei como faxineira e garçonete. Depois de um ano fora do país lavando latrinas e atendendo clientes num restaurante que vivia cheio, voltei com muita disposição. Era o momento de recomeçar.
Naquele reinício de carreira, eu não tinha uma área fixa de cobertura. Auxiliava as diferentes editorias de acordo com a necessidade de cada uma. Foi aí que, numa reunião de pauta no iniciozinho do mês, a saúde de Collor voltou a ser assunto. Estava mais do que na hora de deixarmos de ouvir maledicências e tentar checar a veracidade delas. Como saber se o presidente da República era soropositivo?
O pessoal que cobria o Palácio do Planalto já tinha tentado verificar a boataria com suas fontes. O povo do Congresso também tentou confirmar a história com parlamentares da pequena base aliada de Collor, aqueles que eram da chamada “República de Alagoas”. Os caminhos do jornalismo ortodoxo tinham sido percorridos e nada. O jeito foi apelar para algo mais heterodoxo.
Alguém lembrou do lixo. Não seríamos os primeiros a vasculhar o lixo de autoridades. Em tempos idos, outros veículos brasileiros e também de outros países tinham feito matérias com base no lixo, com enfoques diferentes: o que havia no lixo de celebridades, o que revelava o lixo das autoridades, o retrato do consumo pelo lixo etc.
A ideia, enfim, não era nada de muito original. O problema era outro: quem seria capaz de pôr a mão nos detritos descartados pela Casa da Dinda? Silêncio. A tradição das redações em Brasília não é exatamente revirar resto de comida e papel higiênico usado. Entre risadas e gozações dos colegas, eu me ofereci para fazer o “trabalho sujo” e fui aceita para a missão.
Na hora, não me ocorreu nenhum questionamento ético. Eu só queria saber o que deveria procurar na nova matéria-prima jornalística. Certamente, não encontraria o exame com o resultado positivo para HIV. Mas quem sabe eu não encontraria uma bula de AZT (o remédio mais eficaz na tentativa de controlar a Aids), um frasco vazio, uma embalagem com o nome do medicamento acenando para mim? Pronto: eu tinha um foco inicial.
Não foi por acaso que uma das retrancas da matéria principal era sobre a “farmácia da Dinda”, na qual constavam 11 remédios, mas nenhum deles relacionados à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a Aids. “Nenhum dos remédios sugere um grave problema de saúde, mesmo que o conteúdo tenha sido tomado por uma única pessoa”, escreveu em um boxe à parte o redator médico da Folha, Julio Abramczyk.
Cautela quase científica
As dificuldades da apuração não eram poucas. A única maneira de chegar ao lixo da Casa da Dinda era pelo caminhão que passava recolhendo os sacos da vizinhança. Como eu poderia me certificar de que aquele lote de restos e imundícies que eu levaria para a redação para examinar cuidadosamente era mesmo da casa do presidente da República, da casa do Collor, e não de uma das mansões vizinhas?
Era preciso adotar uma cautela quase científica. Primeiro, fiz plantão em frente ao endereço do presidente durante dois dias seguidos. No carro mais velho da frota de veículos que atendiam à sucursal da Folha, um Ford Corcel II creme, chegava ao local por volta das 5 horas da manhã, com o motorista reclamando da pauta, e ficava até o caminhão que fazia a coleta entrar pelo portão da casa da Dinda, recolher o lixo e sair em direção ao próximo endereço.
No primeiro dia, apenas observei. Discretamente, segui o caminhão para saber exatamente o trajeto que ele faria. No segundo dia, após confirmar o mesmo trajeto da véspera e reconhecer o caminhão, acenei para o motorista e pedi para ele parar. O local onde ele manobrava era uma rua sem saída. Foi fácil fazê-lo estacionar o veículo e conversar comigo.
Nesse momento, eu menti. Disse ao motorista que era estudante da Universidade de Brasília (UnB) e estava fazendo um trabalho acadêmico sobre o lixo das autoridades. “O senhor pode me ajudar?”, perguntei. “Preciso pegar o lixo do presidente e ter certeza que é dele.” Fiz aquela cara de inocente e meio sem noção. O motorista não resistiu, nem fez perguntas.
Combinamos que eu estaria naquele mesmo lugar no dia seguinte, uma quinta-feira, e que precisava que ele não acionasse o mecanismo de misturar o lixo, para que eu pudesse pegar os sacos retirados da casa da Dinda intactos. Ele aceitou o meu pedido.
No dia seguinte, saí de casa com uma roupa surrada, que eu pudesse jogar fora depois, comprei uma luva cirúrgica, dessas que os médicos usam para operar, e fui ao encontro do lixeiro. Foi um momento tenso. Meu maior receio era de que alguém da segurança da presidência aparecesse e eu não conseguisse pegar nada. Sem contar o risco de uma prisão ou algo parecido.
Foi tudo muito rápido. Prendi a respiração, subi no caminhão e retirei alguns sacos que estavam num canto do veículo, já separados pelo motorista, a meu pedido. No dia seguinte, o mesmo procedimento. Bastaram dois dias de “coleta” para que eu juntasse o material que embasou as matérias publicadas na Folha.
No terceiro dia, uma sexta-feira, a sorte acabou. O titular da linha “Mansões Lago Norte-Dinda” voltou ao trabalho. Ele estava doente e afastado por alguns dias. Só então soube que estava até aquele momento lidando com o reserva. Só havia conseguido pegar os sacos de lixo porque o responsável pela linha era um substituto eventual, que foi com a minha cara e acreditou na minha história. Ou fez de conta que acreditou.
Após os riscos da coleta, veio a parte mais desagradável do trabalho: a seleção do lixo. Dizem que o jornalista separa o joio do trigo para publicar o joio. Eu tinha que separar o lixo que era notícia do lixo que era lixo mesmo. Virei por uns dias motivo de chacota na redação. Arranjaram para mim uma saleta que ficava num canto, onde pus em prática a fase de pré-seleção. Ninguém queria nem se aproximar. O mau cheiro espantava todo mundo.
Suportei o mau cheiro, mas não foi fácil. Só de lembrar me pergunto como consegui fazer isso, mas fiz. Isolei a parte noticiosa do lixo presidencial e segui com ela, então, para a casa da minha mãe (eu ainda morava com ela). Minha apuração entrava em outra fase. Numa operação minuciosa, montei verdadeiros quebra-cabeças. A 14ª versão do artigo do presidente que seria publicado na Folha estava rasgada em pedaços. Colei um a um até preencher as lacunas do texto.
O que me pergunto, hoje, é se aquele trabalho ao qual me dediquei fazia sentido. Contei esses detalhes todos para os alunos da ECA, com essa dúvida na cabeça. Tenho para mim que muitos acharam o que eu fiz errado, mas ninguém disse isso com todas as letras. Abri para perguntas. Poucas foram feitas. Uma delas, confesso, me deixou constrangida. O aluno falou que hoje é ilegal expor uma pessoa soropositiva. Ele perguntou como eu lidava com isso. O que dizer?
Dilema ético
É bem verdade que, em 1992, era diferente. Mas, e se fosse hoje, seria ético fazer uma matéria usando as técnicas que usei? Seria ético revirar o lixo de Dilma Rousseff? São perguntas que nós, jornalistas profissionais, devemos nos fazer uma, duas, dez vezes. Revirei o lixo de uma pessoa, menti para o motorista do caminhão e, caso achasse um frasco de AZT, que eu nem sabia como se apresentava, estava disposta a publicar a informação de que o presidente da República ou alguém na casa onde ele morava estava usando o remédio prescrito para portadores do vírus da Aids.
Agi de forma ética? O interesse público justificava aquele nosso procedimento? Até que ponto saber se o presidente da República tem uma doença grave, e saber isso contra a vontade dele, é de interesse público? A partir do momento que divulgássemos uma matéria confirmando a doença, não estaríamos correndo o risco de fazer o estado de saúde do ser humano Fernando Collor de Mello se agravar?
Claro que, se algum frasco de AZT fosse encontrado, muita água iria passar por debaixo daquela ponte antes de publicarmos uma matéria com uma informação tão grave. Éramos muito jovens, muitos de nós, mas não acredito que fôssemos alegremente irresponsáveis.
Olhando agora tudo isso em retrospectiva, prefiro pensar que, por sorte (outra vez, a sorte), não achei AZT no lixo do Collor. Não achei nenhum indício de que ele estivesse com Aids. Mesmo sem isso, a reportagem rendeu. Saí daquela apuração com uma boa matéria, que revelou uma falha na segurança da principal autoridade do país, e, por causa dessa reportagem, as vulnerabilidades no esquema coordenado pelo Coronel Dark foram sanadas.
Que lições guardo desse episódio? Difícil dizer. Uma boa repórter não pode ter medo de sujeira, isso é certo. Uma boa repórter precisa gostar de notícia. Me pergunto, também, se a mentira dita ao motorista do caminhão de lixo era necessária. Se eu dissesse que era uma repórter ele teria me ajudado? Não tenho uma resposta para essa questão. Uma boa repórter deve respeitar as pessoas, mesmo as mais poderosas. Deve encarar com boa-fé os seus dilemas éticos e não mentir para si mesma. Por fim, uma repórter só é boa de verdade quando tem uma dose de sorte. Eu tenho.
***
Edna Dantas é sócia-diretora da Agência Satya Comunicação e Tecnologia