O governo brasileiro parece não estar preocupado com a velocidade do processo autoritário na Venezuela. O presidente Lula mencionou no encerramento da Cúpula do Mercosul, no Rio, a necessidade de se aceitar o que ele chamou de ‘pluralismo ideológico’, mas Caracas está fabricando um pluralismo institucional, e isto é muito mais complicado. Nós somos uma democracia e a Venezuela parece empenhada em mostrar que muito em breve deixará de sê-lo.
Parceiros tão diferentes podem não ter problemas agora, mas amanhã certamente vão se estranhar. O pior é que em nome da integração regional o governo brasileiro está se acostumando a engolir todos os sapos. O pronunciamento do caudilho contra a mídia brasileira na sexta-feira (19/1) foi uma clara intervenção em nossa vida e soberania.
Todo-poderoso
Dirão alguns que Chávez reclamou apenas contra um veículo nacional, O Globo, cuja manchete leu, parece que entendeu e não gostou. Não importa: como hóspede do país, o magnata do petróleo não tem o direito a imiscuir-se em nossa vida; não tem o direito, sobretudo, de investir contra setores ou entidades que gozam de todas as garantias constitucionais.
Mas como o presidente Lula foi à Venezuela falar mal da nossa imprensa, seu colega achou-se no direito de imitá-lo. A mídia venezuelana não está neste momento em condições de contestar o todo-poderoso chefão. Nós temos obrigação de fazê-lo.
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Homenageado, Chávez ataca mídia brasileira
Copyright Folha de S.Paulo, domingo (20/1/2007)
Em um discurso de duas horas e nove minutos de duração, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fez ontem à noite no Rio um virulento ataque aos meios de comunicação do Brasil e da América Latina. Chávez identificou a mídia ao ‘imperialismo norte-americano’ e às ‘oligarquias sul-americanas’. ‘Por mais dinheiro que gaste a oligarquia,com seus jornais, com suas estações de rádio ou suas televisões muito poderosas, acontece que os povos despertaram.’
Ele afirmou que a cobertura jornalística sobre seus atos faz parte da ‘estratégia inimiga’ de ‘impedir que a idéia da revolução bolivariana tenha impacto’. Pregou: ‘Épreciso pulverizar a estratégia inimiga’. Antigo coronel do Exército, o presidente citou o herói da independência da Venezuela e de outros países da região Simón Bolívar (1783-1830): ‘É como uma guerra. Uma artilharia. Simón Bolívar dizia que a imprensa é a artilharia do pensamento.Temos que ganhar a batalha ideológica’. Acrescentou: ‘O jornalismo de hoje é subordinado na maior parte das vezes a interesses contrários ao povo e à pátria. Com exceções honrosas, claro. Refiro-me aos grandes meios de comunicação’. O presidente fez as afirmações no momento em que a oposição o acusa de promover um cerco à liberdade de imprensa em seu país. Há dias ele anunciou que o governo não renovará em maio a concessão da rede de televisão RCTV, acusada de apoiar o golpe de Estado fracassado em 2002. Ontem reafirmou o fim da concessão.
Chávez fez as declarações na Assembléia Legislativa do Rio, ao receber a medalha Tiradentes. O autor da iniciativa foi o deputado Paulo Ramos (PDT). O alvo central dos ataques do líder venezuelano foi o jornal ‘O Globo’. Com o diário na mão, citou título e subtítulo da primeira página da edição de ontem: ‘Declaração do Mercosul vai pedir respeito à democracia; documento é assinado em plena escalada autoritária de Hugo Chávez’. Antes, citou a Em seguida, disse que o jornal o fustigou ‘com veneno’. Quando o público de cerca de 500 pessoas começou a vaiar o diário, Chávezvaiou também e disse: ”O Globo’, não tenho dúvidas de dizer, é inimigo do povo brasileiro. É inimigo do povo latino-americano’. Foi aplaudido pelo presidente da Casa, Jorge Picciani (PMDB). A assistência pediu: ‘Rasga, rasga!’. Chávez, jornal à mão, respondeu: ‘O papel não tem culpa’. Ele disse que ‘os fascistas queimavam livros’ e não rasgou. O público gritou: ‘O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo’ e ‘Brizola, Chávez, a luta continua’. O presidente prosseguiu: ‘Os oligarcas donos de ‘O Globo’ tratam de me desfigurar.
Eles são os desfigurados […] ‘O Globo’ não faz mais que cumprir o mandato do amo imperialista’. Quando citou Lula, parte da platéia vaiou o presidente do Brasil, e Chávez o defendeu. Procurado pela Folha, ‘O Globo’ fez uma breve manifestação: ‘O que a gente faz aqui é jornalismo’, disse o editor-executivo Ascânio Seleme. Depois da ida à Assembléia, Chávez visitou o arquiteto Oscar Niemeyer. Voltaria ainda ontem à noite para Caracas.