O sinal da Rádio Caracas Televisão (RCTV) voltou a desaparecer das telas à zero-hora de domingo (24/1). Proibida em maio de 2007 pelo governo venezuelano de Hugo Chávez de continuar usando o sinal aberto, a emissora passou a transmitir sua programação por cabo e manteve boa parte de sua grande audiência. No sábado, porém, desobedeceu a uma ordem do governo para integrar-se a uma cadeia nacional convocada por Chávez para transmitir parte de seu discurso para uma multidão de manifestantes chavistas que lhe demonstravam apoio.
Na semana passada, a Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) havia determinado que a RCTV e outras emissoras por cabo consideradas ‘nacionais’ deveriam transmitir mensagens do governo. A RCTV recorria da decisão na Justiça e recusou-se a integrar a cadeia no sábado. Foi o pretexto ideal para que, pouco depois, por volta das 21 horas (23h30 de Brasília), o diretor da Conatel e ministro de Obras Públicas, Diosdado Cabello, exigisse das operadoras de TVs por assinatura que tirassem de sua grade os canais que não cumpriam com as normas ditadas pelo órgão. Não mencionou especificamente nenhuma emissora. Além da RCTV, saíram da grade das operadoras os canais American Network, América TV, Ritmo Son, TV Chile e Momentum.
Efeito suspensivo
Como em maio de 2007, a revolta tomou conta dos 1.500 funcionários da RCTV depois que a emissora saiu do ar. Muitos deles se dirigiram à sede da Conatel para protestar. Ainda organizados após a gigantesca marcha contra as medidas de Chávez, grupos de estudantes e militantes de partidos da oposição juntaram-se à concentração dos funcionários da RCTV. Em Maracaibo, no oeste do país, pelo menos quatro pessoas ficaram feridas em um protesto contra o fechamento da emissora.
‘Estamos diante de mais um atropelo da liberdade de expressão por parte do chavismo’, disse ao Estado Yani Roque, militante do partido de oposição Primeiro Justiça. ‘Deixamos claro na marcha de sábado que não nos renderemos à ditadura de Chávez.’
Presidente do grupo ao qual pertence a RCTV, Marcel Granier disse em conversa com jornalistas que não sabe qual será o futuro da emissora. ‘Isso já não depende de nós’, afirmou. Granier acrescentou que a decisão da Conatel é ilegal, pois a sede formal da RCTV funciona em Miami. ‘Tínhamos impetrado um mandado de efeito suspensivo para a portaria da comissão porque a RCTV é uma emissora internacional, o que a desobriga de submeter-se às transmissões do governo.’ A portaria da Conatel, porém, estabelece como ‘nacional’ toda empresa de divulgação audiovisual que produza mais de 60% de sua programação em território venezuelano.
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Governo busca hegemonia midiática
Nos últimos anos, o governo de Hugo Chávez tem intensificado as ações contra canais de TV, emissoras de rádio e jornais, como parte de seu plano de estabelecer o que analistas chamam de ‘hegemonia comunicacional’. A não renovação da concessão para que a RCTV seguisse transmitindo em canal aberto, em 2007, foi apenas a ponta do iceberg de cerco às empresas de comunicação que não se alinham com a doutrina de ‘socialismo do século 21’ implementada por Chávez.
‘Não há nenhuma sofisticação no atual cenário político da Venezuela’, conclui o analista político e dirigente do sindicato de jornalistas de Caracas, Raúl Alfaro. ‘O governo tem todo o poder, controla todas as instituições e utiliza toda a sua força para calar qualquer um que levante a voz contra ele.’
Em agosto, a Conatel, utilizando instrumentos legais aprovados pela Assembleia Nacional, fechou 34 emissoras de rádio – quase todas ligadas à oposição – e aplicou multas equivalentes a quase US$ 2 milhões contra a TV Globovisión por ela ter difundido uma notícia sobre um tremor de terra em Caracas antes dos porta-vozes oficiais do governo.
Ao mesmo tempo em que amplia o rigor fiscal e aplica a ‘Lei de Responsabilidade Social’ – que qualifica de ‘terrorismo midiático’ a divulgação de informações consideradas ‘contrarrevolucionárias’ – a empresas de comunicação privadas, o governo tem ampliado sua rede de emissoras estatais e comunitárias. A frequência da RCTV, por exemplo, foi ocupada pelo canal estatal TVes. A meta do governo, segundo analistas, é a de ocupar pelo menos 75% do espaço de todas as mídias no país.
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Cerco à imprensa
** 28/5/2007: Depois de 54 anos no ar, governo venezuelano fecha a RCTV. Emissora, que era a única de alcance nacional que ainda fazia oposição ao presidente Hugo Chávez, não conseguiu renovar sua concessão com o governo
** 8/7/2007: Globovisión, canal de notícias venezuelano que mantém oposição ao governo, envia carta ao vice-presidente Jorge Rodríguez denunciando pressões por parte de Chávez, como processos judiciais e administrativos contra a emissora
** 16/7/2007: RCTV inicia transmissões por cabo, prometendo manter sua linha ‘pluralista’. Emissora pode ser vista por assinantes da DirecTV, Intercable, Supercable e Planetcable
** 18/7/2007: Governo venezuelano anuncia que pretende fazer uma reforma na legislação que regulamenta as rádios e televisões do país para obrigar os canais de TV a cabo a ‘respeitar a lei’ e transmitir o hino nacional e os discursos do presidente Chávez
** 11/4/2009: Globovisión é acusada de fazer ‘terrorismo midiático’
** 18/4/2009: Promotora sugere cassar licença de emissoras que ‘prejudiquem’ o governo venezuelano
** 3/7/2009: Comissão Nacional de Telecomunicações (Conatel) revoga a concessão de 240 emissoras de rádio AM e FM no país. Governo justifica ação dizendo que as emissoras perderam o prazo de recadastramento
** 21/1/2010: Chávez obriga 24 canais que operam no sistema de televisão a cabo a transmitir seus comunicados em rede nacional. Segundo a Conatel, essas emissoras estão classificadas como ‘produtoras audiovisuais nacionais’ porque mais de 30% de sua programação é produzida no país
** 24/1/2010: Governo suspende sinal da RCTV por não cumprir recente determinação
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Globovisión reforça coro opositor e amplia convocação de protestos
Frequentemente ameaçada de ser também fechada pelo governo, a emissora Globovisión canalizou ontem as reações e a revolta de vários setores da sociedade venezuelana contra o fechamento, pela segunda vez, da Rádio Caracas Televisión (RCTV). Apresentadores da emissora, muitos com a voz embargada, lembravam as ações do regime chavista contra os meios de comunicação e punham no ar imagens de 2007, de manifestantes pró-governo que apoiavam a saída do ar da RCTV em canal aberto. ‘El pueblo lo sabe. Y tiene razón. Ahora le toca, la Globovisión!’, gritavam os chavistas.
Em agosto, na mesma semana em que o governo fechou 34 emissoras de rádio, a Globovisión sofreu um atentado com bombas caseiras lançadas por motociclistas militantes da facção chavista radical União Popular Venezuelana, liderada por Lina Ron – uma mulher que até Hugo Chávez qualificou de ‘incontrolável’. Lina foi presa logo depois do ataque à emissora, que feriu levemente dois funcionários da TV, mas acabou libertada em outubro.
Consciente da grande possibilidade de que seja o próximo alvo do governo, a Globovisión ampliou ontem a convocação do prefeito de Caracas, Antonio Ledezma – de oposição a Chávez –, para um panelaço de protesto às 20 horas (22h30 de Brasília). Em nome da Mesa de Unidade, a coalizão opositora que busca alcançar a maioria da Assembleia Nacional nas eleições de setembro, Ledezma repudiou a medida do governo, que qualificou de ‘uma tentativa do governo de levar adiante seu propósito de estabelecer uma hegemonia nas comunicações’.
Normalmente discreta em seus pronunciamentos contra Chávez, a Igreja, por meio do cardeal-arcebispo de Caracas, Jorge Urosa Savino, também deplorou o fechamento da RCTV Internacional. ‘Não podemos assistir passivamente essas coisas. Temos de lutar para que respeitem nosso direito’, disse. ‘Calar um meio de comunicação não contribui em nada para a manutenção do estado de direito, mas sim enfraquece as garantias constitucionais.’
A saída do ar da RCTV ocorre em meio a dias politicamente turbulentos. No dia 8, Chávez alterou a cotação da moeda venezuelana e criou um câmbio duplo (2,6 bolívares forte por US$ 1 para produtos essenciais e 4,3 por US$ 1, para os demais produtos).
O governo também interveio e expropriou bancos e a rede franco-colombiana de supermercados Êxito, promoveu uma reforma ministerial e está às voltas com uma crise energética que o obriga a promover apagões programados de quatro horas a cada dois dias em todo o interior do país. Um cenário bastante difícil para um governo que hoje tem como prioridade manter sua maioria quase unânime no Legislativo.
Em seu programa semanal, Alô, Presidente!, Chávez convocou seu ministro Diosdado Cabello para explicar os motivos do fechamento da RCTV e das outras emissoras. Cabello, sem mencionar nominalmente a emissora, disse apenas ter cumprido a lei. ‘Então, parabéns Diosdado! Só temos de cumprir a lei’, retrucou Chávez.
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Jornalista