Parafraseando alguém que não me lembro quem (talvez Guimarães Rosa; ou, talvez, apenas um dito popular), coisa que não acaba no jornalismo é clichê e texto ruim. (No original, “coisa que não acaba nesse mundo, é gente ruim e toco de pau” – acho que é isso.) Velho primo-irmão dos tipos móveis de Gutemberg, o clichê é um ser que sobrevive como um highlander em todas as mídias. Mutante, vive em permanente migração entre elas, como um viral indomável. Praga, tem em todo lugar e parece renascer eternamente.
Assim é que – em jornal, TV, rádio e qualquer mídia – todo buraco em calçada, rua, estrada ou obra do metrô é chamado de “cratera”. Não que o termo seja inadequado. O que cansa é a repetição. E o invariável adjetivo que qualifica o referido buraco: “grande”. Ocorre que “grande” é muito relativo. Um buraco grande pode ser aquele suficiente para que uma criança caia dentro dele. Ou um ônibus. Ou um quarteirão inteiro. Alguns repórteres mais zelosos até fazem comparações elucidativas: “Uma cratera do tamanho de um campo de futebol.” Ou tentam ser mais precisos: “Uma cratera de sete metros de largura.” Melhor para o leitor, especialmente se a matéria não tem fotos. Ainda assim, invariavelmente, redatores e repórteres não abdicam do “grande”.
Passageiro “sem passagem”
Além disso, atenção para o verbo! Toda cratera de rua e estrada só sabe fazer uma coisa: “engolir”. Criança, ônibus, quarteirão – não importa. A exceção é apenas para a cratera original, a de vulcão, que costuma despejar (se for lava ou cinzas) e lançar (se for fumaça ou gases).
Rotular como cratera qualquer buraco também pode levar a situações ambíguas e curiosas. Imaginemos que um repórter esteja cobrindo a descoberta de um fóssil de dinossauro na cratera de um vulcão extinto. E, na entrevista com o paleontólogo responsável, este exibe a cabeça do animal e aponta várias “crateras” em sua arcada dentária para especular sobre os hábitos alimentares do bicho ou sua causa mortis… É muita cratera para uma matéria só. Além disso – proporcionalmente – a cratera do vulcão pode ser bem pequena, enquanto as dos dentes do dinossauro podem ser enormes. Melhor, sempre, seria evitar o uso abusivo e a banalização da palavra cratera e ser mais preciso ao informar sua real dimensão.
No noticiário policial, outra palavra também virou clichê: “passagem”. O termo deriva da expressão “tem passagem pela Polícia”, que significa que um suspeito é praticante contumaz de determinado ato infracional ou crimes variados. Com o tempo, o complemento “pela Polícia” foi caindo em desuso e, hoje, é mais comum o repórter dizer apenas que o indivíduo “tem passagem” (coisa que muito viajante ou turista também tem, afinal – podendo gerar indesejáveis interpretações em uma matéria sobre overbooking nos aeroportos brasileiros). E aí, por uma clara preguiça de redatores e repórteres em buscar palavras e expressões menos puídas pelo uso, “passagem” tornou-se uma figurinha fácil e repetida à exaustão nas editorias de polícia – para quem ninguém mais parece ter antecedentes criminais ou ser, simplesmente, reincidente.
O “craque” no banco
O tema remete a outro clichê dessa editoria, mais frequente, porém, em TV. É a inesquecível cena da “extensa ficha policial” (uma expressão igualmente clichê), em que todo o histórico do suspeito é estendido pelo chão das dependências da delegacia e a câmera sobrevoa a papelama até encontrar o repórter, de pé, na outra ponta da ficha – ao lado do delegado ou investigador do caso.
Esse é um perfeito exemplo de clichê visual, um modelo de abordagem da matéria que é copiado e reproduzido por diversos repórteres de emissoras distintas. Mas, felizmente, parece estar em desuso. Mérito, talvez, não dos nossos repórteres e cinegrafistas, mas da substituição dos formulários contínuos e das impressoras matriciais pelo prático papel A4 e modernas impressoras a laser ou jato de tinta, em nossas delegacias.
Território dos mais profícuos para o surgimento e propagação de bordões e chavões, o jornalismo esportivo é a grande clicheria-mãe de toda a mídia. Com o perdão do trocadilho, é o campeão. E é de lá que vem o mais novo clichê do jornalismo nacional. Expressão lugar-comum, arroz de festa, bola da vez e figurinha fácil de toda mesa de debates na TV e resenhas esportivas do rádio, o “jogador diferenciado” barrou o antigo “craque” e parece ter conquistado definitivamente a posição de titular da equipe – qualquer equipe.
Um jornalista diferenciado
Mais uma vez, não é o termo que é inadequado; é o uso abusivo que incomoda e que cria o clichê. E, aí, a limitação do vocabulário do jornalista e a pobreza do texto se evidenciam. O atleta até poderá continuar sendo diferenciado, mas os textos jornalísticos ficam cada vez mais iguais. Porque algum repórter ou comentarista foi original e cunhou a expressão, os outros só a reproduzem, sem critério.
Por isso, toda vez que escuto um repórter dizer que fulano “é um jogador diferenciado”, preciso me segurar para não partir logo para as mais escabrosas especulações sobre o atleta. Será que o sujeito é azul? Veste fraque para jogar futebol? Calça 68, bico fino? Tem três cabeças? Cinco orelhas? Tem nadadeiras dorsais?
Sei lá, no fundo, talvez eu seja apenas um jornalista diferenciado, com passagem por antigas redações e pronto para ser engolido por alguma cratera que se abra em meu caminho e sepulte minhas ideias para sempre…
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Jornalista, escritor e dramaturgo, Belo Horizonte, MG