A edição do jornal O Globo de quinta-feira (22/1), dois dias depois da posse de Barack Obama, é histórica. Merece ser guardada. Não somente pela cobertura dada ao primeiro presidente negro dos Estados Unidos, mas, sobretudo, porque inaugura o media criticism na primeira página de um dos mais importantes jornais do país. Está lá, na capa, em box sem assinatura, o título ‘Mídia: China censura, Cuba minimiza e EUA ignoram família Obama’, seguido do texto: ‘A mídia estatal chinesa censurou o discurso de Obama. Na internet e na TV houve corte nas traduções para o chinês nos trechos em que Obama abordou temas como comunismo. Já o Granma, jornal oficial de Cuba, noticiou a posse em nota de rodapé da primeira página. E a imprensa americana ignorou a presença da família queniana de Obama nos festejos.’ |
Estado e mercado
Censura do Estado, de grupos privados ou autocensura; saliência menor do que aquela que o fato tem; e omissão são formas conhecidas de práticas na cobertura jornalística. Os estudiosos tratam a saliência e a omissão como ‘enquadramento’ e usam exemplos delas para argumentar sobre a parcialidade e a natureza constitutivamente desequilibrada das notícias.
O que O Globo nos revela é que essas práticas ocorreram na cobertura da posse de Obama, tanto no jornalismo de países onde a imprensa é controlada pelo Estado – China e Cuba –, como no mercado da mídia privada, inclusive no campeão da democracia representativa, o próprio Estados Unidos.
Observação da mídia
Ao contrário de todas as outras manchetes e chamadas de primeira página, nesse box não se remete o leitor para páginas ou matérias específicas dentro do jornal. O assunto está sendo tratado, supõe-se, no conjunto da cobertura sobre a posse, nas páginas 27 a 31 daquela edição.
De fato, às páginas 28 e 29 a cobertura da posse de Obama em outros jornais é objeto da cobertura que O Globo faz. São reproduzidas as primeiras páginas de 12 jornais de oito países diferentes – EUA (4), Argentina, Cuba, Inglaterra, França (2), Espanha, Israel e China. Obama está em todas elas. O leitor encontra também uma matéria, cuja autoria não é identificada, sobre a censura na China e outra, de Marília Martins, sobre a omissão da imprensa americana em relação à família queniana de Obama. Sobre a cobertura da imprensa cubana, não há mais nada além da capa do Granma onde se vê claramente o rodapé ‘Obama ya está en la Casa Blanca’.
Tudo isso parece revelar que o editor da primeira página de O Globo, conhecendo a cobertura feita pelo seu próprio jornal e agindo como um típico observador da mídia, julgou importante registrar as diferenças na cobertura que a posse de Obama recebeu da grande mídia mundial.
Tratamento desigual
A matéria sobre a censura na China abre com a frase: ‘A mídia estatal chinesa censurou o discurso de posse de Barack Obama, suprimindo partes com assuntos delicados para o país asiático, como comunismo e dissidência’. Já a matéria sobre a omissão da imprensa americana começa com a afirmação: ‘A grande mídia americana ignorou solenemente uma parte da família do presidente eleito na cerimônia de posse’. Foram especificamente citados o New York Times e o Washington Post.
O tratamento desigual de fatos semelhantes é uma forma de distorção da notícia. Não teria sido ‘bom jornalismo’ lembrar ao leitor que, ao contrário da mídia estatal chinesa – qualificativo usado também no box da primeira página –, a grande mídia americana é privada ou de mercado?
Para comemorar
De qualquer maneira, só se pode celebrar o que foi feito por O Globo. Primeiro, por incluir, na sua primeira página, um box crítico da cobertura da mídia. Segundo, pela admissão implícita de que as coberturas jornalísticas sofrem distorções e que estas distorções ocorrem tanto em países onde a mídia é controlada pelo Estado como em países em que é controlada pelo mercado. E terceiro, por haver evidenciado a necessidade e a conveniência da observação crítica permanente da mídia, seja onde for.
Quem sabe, O Globo – que sequer tem um ombudsman – passa a fazer uma reflexão sistemática sobre a cobertura da mídia, incluindo, é claro, a brasileira e a sua própria?
A edição de O Globo da quinta-feira (22/1) é, sem dúvida, um precedente histórico para ser guardado e comemorado. Parodiando título de artigo de Alberto Dines neste OI (edição nº 520), ‘Bem-vindo ao Observatório, O Globo!’
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)