Quando a divulgação de que um ex-presidente da República sofre de um câncer passa a ocupar desmesurado espaço na imprensa escrita, radiofônica, televisiva e virtual (web) é robusto sinal de que algo vai mal – muito mal – na nossa conhecida atividade jornalística. E é isso o que está acontecendo desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva informou à população que sofria de um câncer na laringe, na sexta-feira (28/10).
Triste espetáculo encenado por ícones do jornalismo: jornalistas há muito consagrados fingindo solidariedade ao presidente enfermo e usando a tal “solidariedade” como escada para desancar seu ideário político, desferindo pesado bombardeio opinativo contra suas festejadas conquistas quando à frente do governo; analistas políticos, ou que assim se julgam, usando os meios a seu dispor para, a título de condenação, endossar uma minoria rancorosa que, principalmente no mundo virtual, vocifera a estapafúrdia sugestão de que o ex-presidente trate de seu câncer na rede pública de saúde do país, o SUS.
A situação é de um cinismo tão exuberante que até os angelicais seres barrocos que prestam contínuos louvores à divindade em centenas de igrejas que remontam aos tempos do Brasil Colônia e do Brasil Império logo perceberiam que suas palavras não passam de deslavada fraude ética e moral. E isso fica mais evidente quando, vasculhando arquivos dos grandes jornais e revistas nos últimos 20 ou 30 anos, não encontramos qualquer registro de que os igualmente ex-presidentes Tancredo Neves, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney tenham, enquanto enfermos, no exercício da presidência da República ou não, buscado atendimento médico provido pelo Sistema Único da Saúde.
Cercadinho midiático
Do mesmo jeito, não temos conhecimento de qualquer endosso, velado ou escancarado, por parte de nossos paladinos da liberdade de expressão, a uma campanha para que demais lideranças políticas como os ex-governadores Mário Covas, Leonel Brizola e Orestes Quércia, apenas para mencionar uns poucos, tenham sido instados a recobrar sua saúde física e mental usando a estrutura do SUS. Todos calaram, desconversaram ou, simplesmente, fizeram o que seria mais apropriado: a questão de uma celebridade – seja política ou do mundo artístico – buscar tratamento em hospitais particulares carece de qualquer relevância jornalística. E por uma razão basilar: em qualquer país do mundo, em qualquer sociedade, seja capitalista ou socialista, democrática, teocrática ou ditatorial, as pessoas enfermas buscam tratamento médico de acordo com suas posses e de acordo com a capacitação dos médicos e a qualidade inovadora dos equipamentos hospitalares que suas finanças possam arcar.
Então, caberia perguntar, por que toda a algaravia? Por que tamanha potencialização de um clamor que não se sustenta em pé por si só? Por uma razão também basilar: o preconceito de classe. Isso mesmo: um ex-operário, sem diploma acadêmico, por mais que tenha alcançado o topo do poder político nacional por duas vezes consecutivas, e por mais que possa colecionar diplomas de doutorado na categoria honoris causa, a ele outorgados pelas mais prestigiosas universidades do mundo, ainda assim continuará sendo visto sempre pelas lentes do preconceito tupiniquim. Um preconceito que lhe joga na cara sempre que pode: “Você, não passa de um operário! Trate-se sua saúde, então, como reles operário que é. Não renegue suas origens, siga o caminho que o seu povo deve seguir em caso de doença”.
Explicação mais simples que essa, impossível. Será que não passa pela cabeça dos que clamam para que Lula se trate no SUS – ou pelos que, na mídia, avalizam a infeliz iniciativa – que nunca, absolutamente nunca, qualquer sistema de saúde mantido por qualquer governo terá orçamento suficiente para manter em seus quadro clínico os mais gabaritados cientistas na área médica, os mais renomados estudiosos dessa ou daquela enfermidade; e também não terá condições de manter em funcionamento, 24 horas por dia, os ultrassensíveis (e caríssimos) equipamentos hospitalares de ponta?
A verdade é que as matérias impressas nos dois ou três principais jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro têm um único objetivo: tonificar o preconceito contra o ex-operário Lula. Aquele mesmo que foi duplamente eleito presidente do Brasil e que, de quebra, ainda elegeu sua sucessora.
Essa mesma imprensa, tão ciosa em seu diuturno esforço por se autoproclamar guardiã de postulados éticos, ao invés de apoiar manifestações tão mesquinhas, deveria repudiá-las. Mas, mesmo desejando agora repudiar, suas manifestações carecem de autoridade moral porque não se encontram nelas algo essencial ao bom jornalismo: a pureza de motivos. Daí que alguns jornalistas, aproveitando para reverberar ainda mais a funesta campanha, aproveitam seu cercadinho midiático para expressar solidariedade ao ex-presidente desancando “seus infelizes e-leitores”, que demonstram tamanha desumanidade quando o momento seria mais propício para “expressar a mais elevada carga de caridade humanitária”.
Esquecem-se que, assim como nos ensinavam os gregos antigos (“dize-me com quem andas, que te direi quem és”), na situação atual poderíamos cunhar algo como “dize-me quem lês, que te direi o que pensas”. Com efeito, cada jornalista, cada colunista, cada analista na imprensa, tem exatamente o leitor que o merece.
Exemplo de superação
Não gostaria de encerrar sem antes me conceder outro exercício mental. É o seguinte: e se o ex-presidente Lula decidir se tratar, sim, pelo SUS? E se, por essas coisas do destino, lograr completa recuperação, igual ou melhor que aquela a ser provida pelo sistema privado de saúde? Seria o caso de esperarmos uma nova campanha dizendo que “o presidente Lula, embora tratado pelo SUS, recebeu cuidados médicos de seu médico particular de longa data – mais de 20 anos –, o doutor Roberto Khalil”?
Irônico constatar que a campanha “Lula vá para o SUS” é promovida pelos mesmos entes públicos, privados e midiáticos que orquestraram não faz dois anos aquela campanha contra o restabelecimento da CPMF, que deveria alavancar expressivo montante de recursos para subsidiar a saúde pública. Os mesmos que brandem tão insidioso ataque ao ex-presidente parecem esquecer o provérbio popular que reza “o câncer não dá só nos outros” – e, certamente, seriam os primeiros a buscar hospitais de primeira linha.
Desejo a Lula votos de rápida recuperação em sua saúde. Para alguém que já superou outros tipos de câncer, como o da ignorância e truculência da ditadura, o do preconceito dos poderosos e o da inveja dos fracassados, temos que esperar que um câncer na laringe é, por assim dizer, dos males, o menor.
O que me enoja, não é o câncer do Lula. O que me enoja é o partidarismo político-partidário da grande imprensa. Isso me enoja. Muito.
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Câncer, mal-estar e sintomas na mídia – Rogério Christofoletti
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]