Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cobertura movida a escândalo

Desde a eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado, em 2 de fevereiro, a notícia do dia tem sido invariavelmente mordomias, benesses e irregularidades cometidas por representantes do povo democraticamente eleitos para ocupar uma cadeira no Congresso Nacional. Assuntos que poderiam ser relegados a nota de rodapé em uma página dedicada a cobrir o Brasil transformaram-se da noite para o dia em assuntos da maior relevância para o público leitor.


Assim, a cobertura do uso (in)devido de passagens aéreas por parte dos parlamentares e sua cessão para benefício de terceiros (parentes, amigos, sócios, eleitores) produziu capas de jornais e de cadernos, ganhou lugar cativo na escalada de notícias do Jornal Nacional – programa líder de audiência televisiva no Brasil – e ocupou boa parte das páginas dedicada ao noticiário nacional nas quatro principais revistas semanais do país.


A situação chegou a um ponto em que o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) não pensou duas vezes antes de usar a tribuna do Senado para recomendar nada menos que um plebiscito para auscultar a população quanto ao seu desejo de fechar o Congresso Nacional. Mas existia ainda gente lúcida no Senado e a idéia nem impulso teve para se manter mais do que aqueles três minutos em que era despejada sobre a tribuna. Falar em fechamento do Poder Legislativo, ainda mais quando este se encontra fragilizado junto à população, não prenuncia nada de bom para o país. E estamos ainda próximos demais de 1964, 1968, 974… para saber o retrocesso na vida institucional do país que significa a supressão do poder que, por excelência, dá voz ao povo.


Reserva moral


Sabemos dos escândalos na base do conta-gotas. Quanto ao que alguns meios de comunicação chamaram de ‘farra das passagens’, ficamos sabendo aos poucos, a intervalos de 24 ou 48 horas, que esse ou aquele deputado, esse ou aquele senador utilizou de sua cota de viagens determinado valor em passagens aéreas para transportar a apresentadora de televisão Adriana Galisteu do Rio de Janeiro para Natal, para levar esta e sua mãe em viagem a Miami; outro não hesitou em mandar emitir bilhetes aéreos para transportar esposa e filhos de Salvador para Madri, com providencial escala de três dias no Rio.


Em um dia ficamos sabendo que um parlamentar, mesmo sendo proprietário de um avião moderno, modelo Sêneca, usou parte de sua cota de passagens para fretar avião particular de um amigo; e em outro dia nos foi revelado que outra excelência fez o mesmo, mudando apenas a data e o trajeto voado. Uma deputada usou parte de sua cota para transportar o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiróz nos trechos Brasília-Porto Alegre-Brasília.


Bem ao estilo pinga-pinga, o noticiário político procurou dar conta de passageiros, itinerários e valores pagos com recursos da União para que terceiros voassem a seu bel-prazer para qualquer lugar do Brasil ou do exterior. Dos 513 parlamentares, acrescidos dos 81 senadores, contabilizou-se que 274 destes utilizaram cotas de passagens de maneira pouco ortodoxa.


Tivemos então a questão do uso da cota de telefones acessíveis aos parlamentares e pagos pelos cofres públicos. Foi um deus-nos-acuda no Congresso Nacional. Em um dia ficamos sabendo que a filha de um parlamentar usou telefone celular do Senado em sua viagem de férias ao México. Noutro, que vários parlamentares eram contumazes em tal procedimento. Em meio à questão do uso dos bilhetes aéreos e dos telefones, um debate principiou sobre a destinação de valores alocados a cada parlamentar a título de verba indenizatória.


O maior escândalo nessa rubrica foi à imprensa ter noticiado que o deputado Edmar Moreira (DEM-MG) (que antes frequentou o noticiário por ser dono de um castelo não declarado à Receita Federal, em Minas Gerais) utilizou a verba indenizatória para despesas com sua segurança pessoal. Detalhe: a empresa beneficiária era (e é) de sua propriedade. Até a viúva do saudoso senador Jefferson Peres entrou no imbróglio: ela conseguiu autorização do então presidente do Senado Garibaldi Alves Filho para converter em dinheiro vivo o saldo das cotas de passagens deixado pelo falecido marido. ‘Encontrava-me em sérias dificuldades financeiras’, disse a viúva.


Noticiou-se a existência da venda de passagens por agências de turismo utilizando-se cotas de parlamentares. A amplitude dos escândalos atingiu todos os partidos políticos, governistas e oposicionistas, do baixo e do alto cleros, fisiológicos de carteirinha e não, e até mesmo aquele que se autoapresentava como reserva moral, sempre a postos a brandir a bandeira da ética na política e a transparência no serviço público, como aliás, foi o caso do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). Ele também deu passagens de sua cota para viagem de sua filha. E o senador Eduardo Suplicy fez o mesmo, só que para bancar viagem de sua namorada.


Denúncia mal investigada


Outros escândalos espocaram, alguns conseguiram sobrevida de mais dois ou três dias, outros tiveram pior sorte – e da primeira página de um grande jornal em um dia simplesmente desapareceram do noticiário já no dia seguinte.


No último dia de fevereiro, a Folha de S.Paulo publicou que o então diretor-geral do Senado Federal Agaciel Maia escondia em Brasília uma casa avaliada em R$ 5 milhões, com fotos e tudo. Coube a Agaciel o ônus da prova, quando em geral este cabe a quem acusa.


O funcionário do Senado desmentiu a matéria apresentando cópias de suas declarações de renda desde quando comprou a casa, em 1996, até os dias atuais; deixou que estas fossem filmadas e fotografadas, apresentou certidões negativas da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União dando conta de que nunca esteve com seus bens indisponíveis, uma forma de desmentir o objetivo de, segundo a Folha, ter escondido sua casa em nome de seu irmão, pois àquela época estaria com os bens indisponíveis. Para arrematar, duas semanas depois o TCU divulgava sindicância afirmando que o ex-diretor-geral do Senado tinha sim recursos financeiros para ter aquela casa.


Esse é um caso exemplar de denúncia infundada, capa de jornal de circulação nacional, que uma vez derrubada pelos fatos – e pela ausência de apreço pelas normas do bom jornalismo investigativo – terminou em nada, ou melhor, em uma minúscula nota na seção ‘Painel’ da Folha, com várias semanas de atraso, informando que o TCU inocentara Agaciel Maia. Este, precavido, pesquisou os anúncios de classificados do Correio Braziliense atinente ao ano da compra do terreno de sua casa e cotejou os preços de imóveis no Lago Sul, bairro nobre de Brasília. O tal terreno custava não mais que R$ 180 mil em 1996, daí a manchete do jornal paulista agigantar o valor da casa para R$ 5 milhões depois de decorrido quase uma década e meia…


Nesse meio tempo tivemos denúncias amiúde de servidores do Senado ocupando apartamentos funcionais. Um destes era ocupado pelo filho do diretor de Recursos Humanos do Senado João Carlos Zoghbi. A divulgação do fato custou-lhe a diretoria. O senador Gérson Camata (PMDB-ES) foi um dos vários parlamentares a ir à tribuna chorar. Lamentava o senador capixaba que graças a Deus sua mãe não estava viva para não sofrer com o nome do filho enxovalhado pela imprensa. O senador Camata estava desalentado com a publicação da notícia de que residia em apartamento funcional cedido pelo Senado e, ainda assim, continuava recebendo auxílio financeiro para… despesas com aluguel.


Em outro dia ficávamos cientes da divulgação dos custos (elevados) para a construção de uma cela para servir à Polícia Legislativa do Senado no trato com delinquentes. Também foi denúncia mal investigada, pois logo depois saberíamos que os valores envolviam uma reforma muito mais ampla nas dependências do setor de segurança do Senado que a simples construção de uma cela.


Bordão brasiliense


Finalmente nas última semanas tivemos duas edições da revista Época. A primeira trazia denúncias de empresas constituídas pelo já mencionado ex-diretor do Senado João Carlos Zoghbi, por sua esposa Denise e por seus filhos para intermediar empréstimos de funcionários do Senado com instituições bancárias, com desconto em folha de pagamento. A nota alta do escândalo era o uso de uma anciã de 83 anos de idade como diretora dessas empresas de fachada. Detalhe não menos pitoresco: a anciã era uma ex-babá do ex-diretor, sua ama de leite, ainda morando com o casal.


O repórter de Época, em sua visita ao casal Zoghbi, relata ter recebido oferecimento de propina em dinheiro e depois de um automóvel para que sustasse a publicação por parte da revista. Perguntado por Denise Zoghbi sobre como fazer para diminuir o impacto do escândalo, o repórter – ladino – informa que apenas um escândalo ainda maior seria suficiente para colocar aquele em plano secundário. Meia hora depois, voltava à residência dos Zoghbi para colher uma enxurrada de acusações contra os senadores Romeu Tuma (PTB-SP) e Efraim Moraes (DEM-PB), e dirigidas em alta voltagem contra o ex-diretor-geral Agaciel Maia.


As acusações são genéricas em sua natureza e superficiais em seu conteúdo, pois nenhuma é especificada, nem qualquer tramóia é detalhada – e indícios, provas ou fatos são descartados pelos acusadores. Fato é que a revista desdobra essa entrevista em duas partes, fornecendo material para duas reportagens com chamada em capa em duas últimas edições.


Um dia depois (segunda-feira, 4/5) o jornal O Globo publica pequena nota sobre o assunto em que o casal Zoghbi se retrata e afirma não ter mencionado qualquer pessoa, sejam os nomes dos senadores Tuma e Moraes, seja o nome do Maia. Três dias depois (6/5) o casal é ouvido, à noite, por quatro horas, separadamente, pela Polícia Legislativa do Senado, tendo a tiracolo renomado advogado para esse tipo de clientela, Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Horas depois, questionado se a entrevista publicada pela Época era falsa, o advogado afirmou que o casal desconhece qualquer tipo de irregularidade praticada no âmbito do Senado. ‘Eles afirmaram que não fizeram nenhum tipo de responsabilização a nenhum senador nem ao ex-diretor [Agaciel]. Foi importante dizer que eles explicaram, de forma pormenorizada, a reportagem e acho que ficou suficientemente esclarecido’, argumentou o advogado. ‘Eles não conhecem nenhum tipo de irregularidade e, em nenhum momento, falaram de qualquer senador que seja nem do ex-diretor geral’, afirmou Kakay.


Não é demais lembrar o bordão conhecido em Brasília: ‘Quando a casa cai, chame o Kakay’.


Perguntas, perguntas


E tudo isso acontece na quinzena em que o Supremo Tribunal Federal derruba a famigerada Lei de Imprensa parida ainda nos subterrâneos da ditadura militar que governou o Brasil de 1964 a 1985. E isso ocorreu sem uma regulamentação do direito de resposta. E o direito de resposta é um dos pilares que sustenta um jornalismo responsável, um jornalismo cidadão.


Esses últimos dois meses deixam entrever a falta sempre crescente de uma adequada regulamentação jurídica do direito de resposta. Vou além: se a liberdade de imprensa é sagrada, o direito de resposta também o é. Sem o direito de resposta o que existe? Ditadura da imprensa. Melhor dizendo, ditadura dos donos da mídia. Afinal, a quem recorrer contra os excessos da mídia? Ninguém lembra mais do caso Escola Base de São Paulo? Ninguém recorda mais das ‘lágrimas amargas’ de Alceni Guerra e Ibsen Pinheiro? E ninguém me venha com piedosas intenções. Não preciso de bola de cristal para ver que a partir de agora toda demanda pelo direito de resposta estará nas mãos de juízes de primeira instância e estes são bem conhecidos por sua tendência de punir e censurar a imprensa.


Feito esse longo resumo da ópera temos algumas lições a tirar. E alguns sérios questionamentos a fazer. Uma das lições seria a certeza que praticamos uma espécie de jornalismo investigativo pela metade. Não existe uma checagem a fundo das denúncias e estas são publicadas muito mais com o objetivo de furar a concorrência do que com a veracidade dos dados e a robustez dos fatos. O objetivo é tão-somente render melhores manchetes e manter o veículo noticioso em evidência nos dias dedicados à repercussão das denúncias que apresentar ao leitor uma reportagem contendo informações confiáveis. Não se busca um jornalismo crível, com credibilidade. Os personagens envolvidos nas denúncias não têm qualquer importância. Antes de publicar não se dá o direito ao contraditório aos acusados e muito menos se deseja arcar com o ônus da prova, algo tão precioso ao sistema judiciário de qualquer país civilizado.


Outra lição a merecer uma reflexão mais apurada é a pertinência de um veículo midiático, estando de posse de todo um material a ser noticiado, optar por destilar informações confiáveis gota a gota como se manter um noticiário negativo fosse um fim em si mesmo. Na busca desenfreada do interesse da opinião pública, o vale-tudo é o jogo a ser jogado? Por exemplo, qual a razão de se dividir em duas reportagens o que originalmente surgira como uma só? Por que jornalistas relutam tanto em checar os dados de sua matéria antes de publicá-la? Por que editores autorizam publicação de matérias incompletas, mal fundamentadas, com grandes lacunas no quesito apuração?


Por que o espaço dedicado a ‘entenda o caso’ é imensamente maior que o espaço dedicado a ‘o outro lado’? Por que a versão do fato tem precedência ao fato em si? Por que há tanta relutância em dar o devido destaque quando premissas de uma matéria caem por terra ante a robustez de fatos apresentados pelos denunciados por ilicitudes?


Será ético o repórter dar credibilidade para novas denúncias a indivíduo que acabara de lhe oferecer suborno? Será bom para a sociedade brasileira que editores tenham como critério para decidir o que publicar o grau de escândalo dessa ou daquela matéria mesmo quando a reportagem ainda não está madura? Os que mandam e desmandam nos meios noticiosos têm noção do seu poder? E estarão – os donos da mídia – maduros para usar esse poder em defesa do Estado de Direito, de uma cultura de respeito aos direitos humanos?


Será ético manipular o interesse da opinião pública de forma artificial, sonegando-lhe esta e aquela informação e pautando-lhe o que já não oferece valor-notícia e, sim, apenas valor-escândalo?

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo