Mesmo alvo de um processo de cassação do mandato, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, é o protagonista no cenário político brasileiro com declarações serenas para posições conservadoras e até absurdas. “Meu eleitor pensa daquele jeito”, disse ao dar de ombros para as manifestações de mulheres contra o projeto de lei dele que dificulta o aborto para a mulher que sofreu um estupro. O texto da medida foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados no mês passado. Os webjornais publicaram notícias com os dados factuais, com comentários do próprio Cunha, mas não abordaram os contextos das passeatas realizadas em várias partes do Brasil. O manifesto que ganhou maior visibilidade ocorreu na Avenida Paulista, em São Paulo. Os jornalistas destacaram a interrupção do trânsito, no centro econômico, com mais ênfase do que as motivações das manifestantes.
Essa é uma demonstração do reflexo da sociedade que se apresenta como machista e reacionária e que tem ocupado a agenda da cobertura midiática também nas questões relativas à luta pelos direitos das mulheres. Além de destacar informações meramente factuais, houve nesse caso a politização de uma cobertura de cidadania. A mídia, assim, oculta o contexto histórico que faz mulheres, de diferentes faixas etárias, irem às ruas para proclamar a igualdade entre os gêneros. Não são apenas frases como “Pelo direito de ser mulher e fazer do meu corpo o que eu quiser”, “Meu corpo, minha política”, “mexeu com uma, mexeu com todas” e “mulheres contra Cunha”, que marcaram o protesto feminino. Vozes caladas por violência, marcas roxas espalhadas pelo corpo e tortura psicológica são um dos principais motivos que refletem a revolta sobre uma submissão que ultrapassa gerações.
O projeto de lei PL 5.069/13, é mais uma prova de que, em pleno século 21, as mulheres ainda vivem à mercê de uma política social que foge dos princípios do ser humano. Como explicar que o jornalismo prefira expor problemas sociais pelo viés político? Há diferentes hipóteses, como as condições de produção, as interferências e interdições nas próprias empresas ou mesmo o viés empregado pelos jornalistas a partir das habilidades, capacitação ou visão de mundo, temas abarcados em teorias como newsmaking (que trata da produção noticiosa) e gatekeeper (a respeito do papel do editor).
Sem contexto e informações ocultas
Esse tipo de cobertura factual e descontextualizada valoriza o autoritarismo masculino, banaliza a violência e faz da palavra feminismo sinônimo de extremismo. Compara a necessidade de expressão com o comportamento animal. A cobertura das manifestações como apenas um ato de revolta não é suficiente para representar mais um momento da história em a voz feminina, na vontade de alcançar o direito que lhes é digno por natureza, é acorrentada pelo medo dos homens dividirem poder.
Quando acha que já se passou da época em que, se as mulheres não aguentassem a pressão durante e pós-parto eram internadas como loucas; se não obedecessem às regras do marido, eram consideradas ingratas e desprezíveis; e, se quisessem ser donas do próprio corpo e procurassem expor vontades, desejos e virtudes, eram queimadas como bruxas. Projetos na Câmara e enfoque na mídia fortalecem, assim, laços com tabus religiosos.
Coisa de mídia comercial… apontariam os críticos. Mas não é verdade. Até a notícia publicada na Agência Brasil, veículo que faz parte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que teria, em tese, a obrigação de trazer material de maior contextualização, ressalta uma marca do que ocorrem nas outras mídias também: partidarização e informações soltas. Com o título “Manifestação contra projeto de Eduardo Cunha fecha Avenida Paulista”, o material excluiu as passeatas da matéria. O texto é, na verdade, uma nota que enfoca o fechamento da via, além dos trâmites do projeto de lei.
O mesmo ocorre no portal de notícias do UOL. Ao que parece, informações de trânsito são mais relevantes do que descobrir o real motivo das manifestantes. Um conteúdo com fotos também está postado junto ao material, apenas para mostrar a aglomeração de pessoas na Paulista. Nada de mostrar a informações ocultas para o leitor. Quantas mulheres são violentadas diariamente? Quantas tiveram que fazer um aborto de forma ilegal e de alto risco? E as que tiveram que gerar e se reinventar para ter filhos de estupradores?
A repercussão do assunto
A edição do jornal espanhol El País no Brasil privilegiou as imagens, que se tornam uma interessante forma de se contar as histórias, mas não há informações em acréscimo. Há apenas curtos depoimentos de pessoas que participaram dos protestos. Detalhe: todas as imagens são feitas em São Paulo, mesmo levando-se em conta que a manifestação ocorreu com o mesmo motivo em pelo menos outras seis capitais. Mulheres que foram reivindicar os direitos sobre o corpo, levaram cartazes e depoimentos para o jornal.
Ao observar a notícia do portal G1, é possível entender o que aconteceu pelo menos na Avenida Paulista. Segundo a organização do protesto, cerca de 15 mil mulheres foram às ruas para protestar contra Eduardo Cunha e contra o machismo. A dificuldade para realizar o aborto aumentou, caso a mulher tenha sido vítima de estupro. O que gerou muita revolta em todas as mulheres, não só as que foram à passeata, mas também pelas que viram a repercussão do assunto.
O texto acrescenta que a vítima deve passar por um exame de corpo de delito para saber se a mulher realmente sofreu um estupro. Em resumo, todas as informações dadas pelas notícias lidas no texto priorizaram o projeto de lei, dar breves informações de trânsito e de quando as manifestações iriam acontecer de novo.
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Íris Cruz e Victor Fernandes são estudantes de Jornalismo