Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

‘Coincidências’, gatos e lebres

Quando abri a edição especial de Veja que está nas bancas (nº 2.196, dezembro de 2010) tratando de sustentabilidade, tive uma curiosa sensação de dejá vu, como os psicólogos caracterizam a experiência de experimentar uma situação que temos certeza de termos vivido antes. Essa expressão, segundo uma rápida pesquisa histórica, teria sido utilizada pela primeira vez pelo francês Emile Boirac (1851-1917), um pesquisador interessado em fenômenos psíquicos.


Segundo especialistas na área psi (que envolve psicologia, psiquiatria e psicanálise entre outras afins) o dejá vu, que em francês significa ‘já visto’, pode confundir num primeiro momento, mas o efeito de maior impacto é o da estranheza. Mas, no meu caso (e o leitor compreenderá em seguida a razão do uso da primeira pessoa do singular), a experiência do dejá vu tem um nome menos enigmático: suspeita de plágio.


Frases inteiras


Em fins de setembro 2009, como editor de Scientific American Brasil, eu havia trabalhado pessoalmente os textos que agora vejo reproduzidos quase literalmente em Veja, sem nenhuma referência a Scientific American Brasil, ou à edição original americana, Scientific American.


Por uma fração de tempo experimentei uma ligeira confusão, seguida da estranheza, como ocorre com o dejá vu, mas acompanhada de indignação: como é possível que uma publicação com a pretensão de juiz supremo do que ocorre no país e no mundo recorra a um expediente tão precário para oferecer um conteúdo de melhor qualidade a seus leitores?


A seguir, recebo mensagem de um colega relatando uma denúncia publicada pelo site Comunique-se de que Veja, de fato, utilizou-se, de maneira indevida, de conteúdos publicados originalmente no Brasil por Scientific American Brasil. Li também uma justificativa apresentada pela revista de maior circulação nacional de que a estranha ‘coincidência’ se deveu ao fato de Scientific American / Scientific American Brasil como Veja terem utilizado ‘uma fonte em comum’.


Essa justificativa é tão desnecessária quanto insuficiente. E uma razão consistente para se pensar assim é a seguinte: qual a possibilidade de uma pessoa acertar, com uma aposta simples, os seis números premiados entre os apenas 60 de uma cartela da Mega Sena? Um matemático dirá que é de apenas uma em 50.063.860. Essa reduzidíssima probabilidade – muito menor que a de sofrermos um acidente aéreo, sermos atingido por um raio, ou vítima de uma picada de serpente – explica os sucessivos acúmulos dessa loteria.


Então, qual a probabilidade de frases inteiras aparecerem na edição de Scientific American / Scientific American Brasil em outubro do ano passado e de Veja na edição deste mês como resultado de pura coincidência, como a revista pretende justificar?


Nem mesmo uma loteria com a idade do Universo, com 14 bilhões de anos, seria capaz de apresentar um resultado tão surpreendente.


Loteria maluca


Umas poucas referências podem demonstrar que, de fato, não se trata de ‘coincidências’ ou de ‘fontes comuns’, mas de outro expediente. E de uma expediente condenável para uma publicação que se pretende ser levada a sério.


Compare, o leitor, o que está contido entre as páginas 42 e 44 da edição de Veja, neste momento nas bancas e revistarias de todo o país, e o que saiu, já em outubro do ano passado, em Scientific American Brasil.


Na página 16 da edição especial de Scientific American Brasil (Terra 3.0, formada por quatro volumes), texto de abertura do primeiro deles, tratando dos 10 mitos sobre sustentabilidade está escrito o seguinte:




‘Quando uma palavra se torna tão popular que começa a pipocar em todos os lugares, em todo tipo de contextos minimamente relacionados, ou até mesmo nos não relacionados, isso quer dizer de uma de duas coisas: ou ela se tornou um clichê sem sentido, ou tem consistência conceitual verdadeira’.


O texto de Scientific American Brasil está assinado por Michael D. Lemonick, redator sênior da Climate Central, organização catalisadora de idéias sobre a mudança climática, em Princeton, nos Estados Unidos.


Compare, agora, com o que Veja publicou mais de um ano depois:




‘Quando uma palavra cai na boca do povo e pode ser ouvida em toda parte, referindo-se a uma variedade de assuntos, há duas possibilidades. A primeira é ela ter virado um chavão, um lugar-comum destituído de significado real, que pode ser utilizado para qualquer coisa, da venda de sabonete aos programas do governo’.


Mas, curiosamente, Lemonick não merece qualquer referência por parte de Veja.


Outro exemplo de ‘coincidência’. Na página 17 ainda do primeiro dos quatro volumes de Scientific American Brasil sobre sustentabilidade está escrito:




‘Ao que se sabe, o significado moderno da palavra [sustentabilidade] entrou no léxico em 1987, com a publicação de Nosso futuro comum, pela Comissão Mundial das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento [também conhecido como Relatório Brundtland]. Esse relatório definiu o desenvolvimento sustentável como aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de suprir as próprias necessidades’.


E o texto de Veja:




‘O sentido moderno do termo foi claramente definido pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Organização das Nações Unidas em 1987. O documento, chamado Nosso Futuro Comum, classificou o desenvolvimento sustentável como aquele que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades’.


E ‘coincidências’ desse tipo se manifestam, como numa loteria maluca, ao longo de sete dos 10 mitos sobre sustentabilidade.


Pretensão de seriedade


A propósito: por que exatamente 10 mitos, como elegeram Scientific American / Scientific American Brasil. Não poderia ser, por exemplo, uma dúzia, ou duas dezenas?


A atribuição de plágio feita pelo site Comunique-se, a partir das observações de um leitor da própria Veja, ganhou espaço na blogosfera, o que um leitor deste artigo pode comprovar com menos de meia dúzia de toques. Basta entrar no Google e teclar ‘plágio Veja‘.


Um deles, o ‘Luis Nassif Online’ relata que entre os 10 mitos referidos por Scientific American / Scientific American Brasil, sete são de fato muito parecidos com o que Veja oferece aos seus leitores – assegurando que para isso ouviu ‘uma dezena de especialistas’. E o blog posta um item ao lado do outro.


O mesmo blog mostra que, em abril de 2009, o site Comunique-se já havia identificado que uma reportagem de capa da edição de 22 de abril de 2009 de Veja tinha uma surpreendente semelhança – tanto em estrutura quanto em trechos de texto – com um artigo publicado um mês antes pelo jornal americano The Wall Street Journal.


Outra coincidência: a autora do texto de Veja na edição de 22 de abril do ano passado e coordenadora da edição que está nas bancas são a mesma pessoa. O Comunique-se questionou-a em relação às ‘coincidências’ com o material do Wall Street Journal, mas, segundo o site, ela ‘negou a ocorrência de plágio’.


Plágios, lamentavelmente, são mais comuns do que podem parecer, especialmente nesta era de Ctrl+T, Ctrl+C e Ctrl+V, na internet. Mas isso não justifica que publicações com pretensões de seriedade vendam, literalmente, gato por lebre.

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Jornalista