As atuais crises ‘Renan Calheiros’, ‘apagão aéreo’ e ‘greve do Ibama’ possuem entre si um inacreditável e assustador elo que pode esclarecer muita coisa do que acontece hoje na economia brasileira. Indo direto ao ponto: toda vez que se quis privatizar/desnacionalizar empresas ou conquistas brasileiras, as crises foram antecipadamente forjadas com o objetivo de se quebrarem resistências da opinião pública e, por conseguinte, da classe política.
Os exemplos são muitos. Quando se quis impor o absurdo acordo Brasil/EUA sobre a Base de Alcântara (MA), em detrimento do programa espacial genuinamente brasileiro, houve a explosão da base de lançamento do VLS (Veículo Lançador de Satélites), em 2003, matando 21 excelentes técnicos brasileiros. O VLS tinha sido desenvolvido com tecnologia brasileira, excluindo a participação dos EUA. Logo o programa, como estava sendo desenvolvido, seria desativado. Será que não mais se ridiculariza na mídia as quedas sucessivas do VLS brasileiro porque o Brasil deu um salto tecnológico?
A Petrobras sempre foi referência na prospecção de petróleo em águas profundas. Quase não se ouvia falar em acidentes em alto mar ou em terra, nem mesmo relatos acerca de vazamentos. Diante das resistências à privatização da empresa, durante o governo FHC, logo surgiram casos de vazamento e acidentes com os petroleiros. O maior foi com a plataforma P-36, quando 11 petroleiros morreram.
Privatização das distribuidoras
Junto com o caso do vazamento na Baía da Guanabara, em 2000, ampliou-se a campanha que procurava denegrir a imagem da empresa nacional. Foi naquele contexto que surgiu Lei 9478, que estabelecia as licitações (leilões) que, mesmo não privatizando a Petrobras, permitiam que apenas grandes multinacionais do petróleo pudessem meter a mão em nosso patrimônio. Sem investir um dólar em tecnologia e no mapeamento e prospecção do petróleo, as grandes holdings estrangeiras fizeram a festa. Porque não se fala mais das plataformas e vazamentos da Petrobras? Será que os problemas foram todos resolvidos ou é por conta da Lei 9478, que já vigora?
Outro caso assustador foi a chamada crise do ‘apagão elétrico’. O sistema hidroelétrico brasileiro, com seus grandes reservatórios e seus sistemas eficientes de transmissão de energia, permitiu que se fizessem barbaridades durante os cinco primeiros anos do tucanato de FHC sem que a sociedade percebesse, pois havia reservas de água acumuladas. Mas havia a decisão política de se privatizar de qualquer jeito. Diante das resistências, criou-se um sistema híbrido pelo qual as geradoras continuavam estatais e as distribuidoras passaram a ser privatizadas, apenas para se fazer caixa para manter o famigerado ‘superávit primário’.
A campanha contra as geradoras estaduais, mostradas como ineficientes e deficitárias, foi constante. Não se explicava ao público que as estatais foram proibidas de investir em novas usinas hidrelétricas e em linhas de transmissão. Considerava-se ‘investimento’ o dinheiro das privatizações, que apenas transferiram a propriedade de empresas já existentes e não aumentaram a capacidade instalada. Resultado: diante do caos elétrico, quase todas as distribuidoras dos estados foram privatizadas, encarecendo tarifas e piorando os serviços. Será que o ‘apagão elétrico’ foi trocado pela mídia pelo ‘apagão aéreo’ em decorrência de ‘imensos’ investimentos em usinas nos últimos anos ou foi em decorrência do fato de que as distribuidoras estatais já foram privatizadas?
‘Intenções duvidosas’ de Bush
Hoje, Renan Calheiros está no olho do furacão. Enquanto a corrupção no atacado – aquela das remessas de lucro dos grandes oligopólios estrangeiros – rola solta, a imprensa amestrada pega no pé do presidente da mais importante instituição do Legislativo brasileiro. Acusa-o de ter tido as despesas com a manutenção da amante e de sua filha pagas por um lobista de uma empreiteira. Curiosamente, em 1989, o então candidato Lula, quando era visto como uma ameaça ao sistema, teve seu caso com a enfermeira Miriam Cordeiro revelado no Jornal Nacional às vésperas da eleição.
Não foi o caso de FHC, amigo complacente das transnacionais. Embora a mídia soubesse do filho do ex-presidente tucano com uma jornalista da Globo, o fato não só nunca foi divulgado pela grande mídia brasileira como nunca se perguntou ao político como foram sustentados a mãe e o filho no exterior. O filho de FHC e as circunstâncias em que ele e a jornalista foram ‘escondidos’ na Espanha é o maior caso de omissão da imprensa nacional.
Se utilizarmos a lógica descrita nos casos anteriores, verificar-se-á que o problema de Renan não é resultante de uma certa idéia fixa dos jornalistas que cobrem o Senado com questões moralistas – ou as ‘relações perigosas’ de políticos com empreiteiras nacionais –, mas algo muito mais complexo. O pecado de Renan foi escrever o artigo ‘Pé atrás e olhos bem abertos’, em março, quando o presidente Bush visitou o Brasil. No texto, Renan, vinculado à classe de usineiros de Alagoas, advertia o presidente Lula sobre a necessidade de que, numa eventual parceria com os EUA, deveríamos colocar em pauta a questão dos subsídios agrícolas naquele país e tratar a questão de forma soberana, pois o país é detentor da tecnologia e possui grande superioridade comparativa no setor. Renan dizia: ‘Uma parceria com os Estados Unidos (…) pode ser bastante vantajosa para o Brasil. Mas, nessa diplomacia movida a álcool, são no mínimo duvidosas as intenções do presidente Bush, ao deixar de lado as inúmeras divergências comerciais que turvam as relações entre os dois países.’
Esperar para ver
Coincidentemente, foi a partir daquele momento (março) que começou o inferno astral de Renan com a grande mídia. Nunca é demais lembrar que, quando o Brasil, soberanamente criou o vitorioso programa do Pró-Álcool, idealizado pelo engenheiro Bautista Vidal, no final dos anos 70 e início dos 80, enquanto o mundo passava por problemas de abastecimento, foram os usineiros brasileiros que desenvolveram tecnologias em parceria com o Estado, dinamizando a produção e fazendo uma verdadeira revolução energética. Foi um projeto vitorioso de energia barata e não-poluente e que abarcou grande parte da frota nacional.
O democrata Jimmy Carter, inclusive, queria uma parceria com o Brasil, mas logo perderia a Presidência para Ronald Reagan, o candidato dos petrodólares. Quando a crise de petróleo arrefeceu no mundo, logo as holdings transnacionais do petróleo começaram a direcionar a mídia amestrada tupiniquim contra o projeto brasileiro. De repente, carros a álcool foram estigmatizados, as montadoras começaram a sabotar os veículos e os usineiros – até então respeitados e apoiados – passaram a ser tratados pela grande mídia como bandidos.
Hoje, como disse Renan em seu artigo, quando há o ‘susto com as últimas notícias sobre o aquecimento global, somado à escalada de preços do petróleo e à previsão de esgotamento do combustível, a questão ambiental e a corrida por fontes alternativas de energia entraram, definitivamente, na agenda política mundial’.
Por tudo isso, ficam algumas reflexões: quando se pretendia fazer a reforma previdenciária, constantemente surgiam na mídia casos sucessivos de desvios, de déficit previdenciário etc. Será que, com a reforma que acabou por prejudicar nossos velhinhos, as ‘máfias da previdência’ acabaram? Será que a crise do ‘apagão aéreo’, as mortes de seres humanos nos acidentes da Gol e da TAM, assim como ocorreu nos casos de Alcântara e das plataformas da Petrobras, são já sintomas do interesse pela privatização do sistema aéreo brasileiro? Há poucos dias, o presidente da Infraero admitiu, no Senado, discutir o assunto. Seria uma coincidência macabra. É só esperar para ver.
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Analista político, historiador e assessor de imprensa em Brasília