O caos aéreo, com placar de 353 mortes em dois acidentes em dez meses, pôs a administração pública no topo da pauta jornalística. A bagunça no setor aéreo tornou-se um dos temas centrais desde o acidente com o Boeing da Gol, em setembro do ano passado. Na maior parte da cobertura, até o desastre com o Airbus da TAM, os meios de comunicação reagiram à evolução da crise com muita reportagem e muita notícia, mas pouca abertura do foco. A partir do segundo acidente, a pauta ampliou-se e começou a alterar-se a hierarquia da informação. Tratada habitualmente como cenário e complemento, a gestão ganhou status de assunto central e a noção de governo se enriqueceu.
‘Apagão já ameaça energia, estradas e transportes’, informou O Globo em manchete no último domingo de julho, dia 29. ‘Promoção turística teve mais verbas que segurança de vôos’, segundo o subtítulo. Como notícia, esta segunda é a única novidade. Como enfoque, o conjunto é incomum e pode ser um indício de mudança, mas é cedo para saber. Os sinais são sugestivos. O caos aéreo vem sendo mostrado cada vez mais claramente como sintoma de um desarranjo muito mais amplo no organismo governamental.
O desarranjo transparece na cobertura diária, mas quase nunca é o assunto principal. A imprensa descreve com detalhes o loteamento de cargos e as barganhas políticas. Chama a atenção para o preço das composições, mas em geral não vai adiante. O presidente nomeou tais pessoas para atender aos aliados. Tais outras foram indicadas pelos companheiros de partido. E depois?
Se não houver um desastre, um escândalo ou risco evidente de uma crise, não haverá mais notícias sobre o assunto e os nomeados viverão felizes durante anos, mesmo quando incompetentes ou ladrões. Às vezes a barganha só é noticiada como explicação de outra história. O projeto de renovação da CPMF, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, ficou emperrado no Congresso porque o relator atrasou seu trabalho. Notável coincidência: o governo estava sendo pressionado para entregar a presidência de Furnas a um aliado político do relator.
Atenção quase nenhuma
Em certos momentos não há como desconhecer as falhas de gestão. De vez em quando a imprensa faz um balanço da liberação de verbas e da marcha dos investimentos públicos. Alguns continuam como promessas porque os projetos não foram feitos, ou ficaram emperrados na burocracia. A notícia é divulgada.
O leitor, mais uma vez, tem uma idéia de como as coisas funcionam, ou não funcionam, no setor público, mas a história é raramente perseguida até o fim. Os detalhes não aparecem e a dimensão da incompetência – e muitas vezes do desleixo, da malandragem e até da chantagem política – quase nunca é exposta de forma completa.
Os acidentes aéreos praticamente forçaram a abertura do foco. Tais acidentes, dizem os entendidos, nunca são atribuíveis a um só fator. Além disso, a idéia do caos, desde o primeiro desastre, dominou a cobertura e evidenciou uma porção de problemas no setor aéreo. Depois vieram as discussões sobre Congonhas e sobre as alternativas.
A reportagem do Estado de S. Paulo sobre a ocupação do entorno de Cumbica, publicada na quarta-feira (25/7), foi um bom desdobramento desse debate. O jornal mostrou os empecilhos à construção da terceira pista do aeroporto e as falhas das autoridades. O Valor retomou o tema na edição de sexta-feira (27), com várias histórias de famílias envolvidas nessa ocupação.
Os dois jornais mostraram com boas histórias o problema atual. Para a construção da terceira pista será preciso remover e indenizar 20 mil pessoas. Houve imprevidência já na época de construção do aeroporto internacional de Guarulhos. Depois disso, houve omissão, enquanto famílias povoavam também a área reservada. Mas nenhuma atenção – ou quase nenhuma, na melhor hipótese – foi dada ao assunto durante as últimas duas décadas, nem pelas autoridades, nem pelos meios de comunicação.
Omissão escandalosa
O subdesenvolvimento, escreveu Nelson Rodrigues, não se improvisa. Grandes tragédias também não. Isso vale não só para acidentes aéreos, navais ou terrestres, mas também para os maiores problemas sociais, econômicos e ambientais.
A devastação da Amazônia é tema constante do noticiário e dos debates entre especialistas, curiosos e oportunistas. Mas quantas matérias foram produzidas, nos últimos vinte anos, sobre como funcionam, no dia-a-dia, os órgãos de proteção ambiental? Quantas vezes foram mostradas suas condições de trabalho, seus orçamentos, seus meios materiais e seu efetivo de pessoal? Quem sabe, por exemplo, como se faz a fiscalização das madeireiras autorizadas a operar na região?
Mas nem é preciso ir tão longe para assistir à destruição do ambiente. A expansão urbana de São Paulo é quase toda devastadora. Basta sair da cidade pela Rodovia dos Bandeirantes para ver o desastroso padrão de loteamento e urbanização no entorno da capital paulista. Quantas pautas têm sido feitas a respeito do assunto? Ou da ocupação da Serra da Cantareira? A ocupação de áreas de mananciais foi denunciada algumas vezes pela imprensa, mas não de forma persistente. Como se faz a fiscalização dessas áreas? Quem é responsável?
Nenhum desses problemas apareceu de um dia para outro. O acúmulo de famílias nas áreas de mananciais ocorreu ao longo de muitos anos, num processo facilmente identificável. Houve inegável e escandalosa omissão das autoridades. Em alguns casos, segundo se comenta, autoridades ganharam dinheiro com loteamentos. Quantas vezes a imprensa entrou para valer nessas histórias? Se tivesse entrado, o enredo teria terminado, provavelmente, de outra forma.
Cobertura dos efeitos
Perguntas semelhantes valem para uma porção de outros assuntos. A imprensa ainda não contou quem são, de onde vieram e como trabalham os funcionários do Ibama encarregados de examinar projetos como os das centrais elétricas do Rio Madeira. Demorou a mostrar como funcionava a CTNBio, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, um dos organismos mais emperrados do setor público brasileiro. Quando a imprensa mostrou uma parte substancial da história, o presidente da República decidiu mudar o quorum necessário à liberação comercial de transgênicos, apesar da forte oposição de vários grupos não-governamentais.
Sob a rubrica ‘gestão pública’ há um mundo de grandes histórias não contadas. A maior parte dessas histórias se refere ao dia-a-dia de milhões de pessoas. A maioria dos paulistanos tem de usar um dos piores sistemas de transporte coletivo, mas quase ninguém sabe como se definem os trajetos, quais são as obrigações e direitos das empresas transportadoras e como se controla sua operação. Raramente os jornais vão além da cobertura das greves e dos locautes e das notícias sobre o custo e o uso dos passes. O cotidiano da administração do sistema é ignorado. Os vínculos entre vereadores, funcionários do Executivo e empresas são muito raramente examinados.
Cobrir os efeitos da má administração é uma especialidade dos meios de comunicação. De vez em quando, esses efeitos se medem por milhares de vidas sacrificadas. Se o dia-a-dia da gestão pública fosse coberto com maior freqüência, talvez algumas dessas conseqüências fossem evitadas.
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Jornalista