Ainda nos tempos da primeira Guerra do Golfo, nas passeatas em todo o mundo viam-se cartazes com os dizeres: ‘A verdade é a primeira vítima da guerra’. A presente invasão do Iraque pela administração Bush – e os aliados aos seus interesses econômicos mais imediatos – se deveu à criação e funcionamento de uma poderosa usina de mentiras.
Um consórcio de firmas de relações públicas foi contratado pelo governo para vender ao povo a idéia da guerra; e a imprensa americana, antes admirada pelo seu alto grau de independência, teve duas opções: embarcar na campanha ou ser censurada, coisa inimaginável poucos anos atrás. A censura compreende a publicação de textos ditados ou revisados por fontes militares em Bagdá e culmina com a proibição, imposta a jornais e canais de TV, de se publicarem quaisquer imagens dos caixões de militares mortos retornando ao país. Nas últimas semanas, os resultados das investigações dos comitês multipartidários criados pelo Congresso dos Estados Unidos mostraram ao mundo as bases falsas que justificaram essa invasão.
Antes as guerras mudavam fronteiras, aumentando uns países, diminuindo outros. Hoje, entretanto, uma mudança maior de fronteiras ocorre não mais no plano físico, mas no campo da linguagem, do significado de palavras e expressões criadas pela guerra ou adotadas por ela – de novo, para tratar de um tipo de ‘verdade’ que interessa a seus criadores. Assim, os jornais também se tornam campos de batalha onde as vítimas são contadas diariamente – mas não como mortos. Essas vítimas ‘nascem’ e vêm integrar a linguagem que vai ser falada no futuro – e que acaba incorporada ao nosso sistema de valores éticos.
Trabalho penoso
Isto não é um fenômeno novo. Da Antiguidade herdamos o ‘presente de grego’ e a ‘vitória de Pirro’. Em 1815, Napoleão teve seu ‘waterloo’ na Bélgica e mais recentemente os americanos tiveram o seu ‘vietnam’ – duas palavras que passaram a significar derrota desastrosa. A prática antiga do genocídio ganhou um nome novo na Iugoslávia: limpeza étnica.
O noticiário de guerra nos faz compilar um novo dicionário de hipocrisias. Por exemplo: invadir um pais soberano contra a vontade da ONU chama-se ‘ataque preventivo’; matar civis, ‘dano colateral’; matar os companheiros por imperícia ou negligência, ‘fogo amigo’; os que defendem a sua terra natal dos invasores, com unhas e dentes, não são heróis mas ‘insurgentes’ ou ‘rebeldes’; países que não rezam pelo catecismo de Bush: ‘estados delinquentes’.
O secretário-geral da ONU Kofi Anan, meses atrás, alertou-nos para o perigo do uso inadequado do termo ‘terrorista’. Governos autoritários em geral usam terrorista simplesmente para se referir a quem está contra eles.
É lamentável que a imprensa americana esteja sujeita a publicar releases que já vêm com esses termos embutidos. Mas acho mais lamentável ainda que jornais no Brasil estejam publicando a tradução ipsis litteris desses termos e expressões. Mesmo sem a pressão direta da censura aplicada aos órgãos daquele país, os nossos jornais acabam passando adiante as notícias das ‘verdades’ criadas pela administração Bush.
Caberia a todo jornal independente poupar os historiadores do futuro do trabalho de decifrar – tão penoso quanto o de Champolion e sua ‘Pedra Roseta’ – quando estes se propuserem a extrair alguma verdade histórica dos textos dos jornais de hoje sobre a guerra do Iraque.
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Jornalista, graphic designer na Universidade de New South Wales, Sydney