A repercussão do falecimento de Fidel Castro traz uma oportunidade para refletir sobre como são pautados os discursos geopolíticos da mídia brasileira. Os noticiários sobre Cuba, única nação socialista da América Latina, nos fornecem exemplos emblemáticos de coberturas jornalísticas que remetem ao período da Guerra Fria, época em que a mídia ocidental dividia o mundo em “bem” (bloco capitalista) e “mal” (bloco socialista).
Em 2012, quando a então presidenta Dilma Rousseff fez sua primeira visita oficial a Cuba, a mídia hegemônica não se propôs a discutir a pauta da viagem diplomática, que envolvia acordos econômicos entre o Brasil e a ilha caribenha, limitando-se a enfatizar sua cobertura no desrespeito aos direitos humanos em Cuba. Questionada sobre o tema, a presidenta lembrou as violações de direitos humanos cometidas pelos Estados Unidos na prisão de Guantánamo e advertiu os jornalistas sobre a importância de se abordar essa complexa questão dentro de uma perspectiva multilateral. Posteriormente, durante o Jornal Nacional, William Bonner capciosamente destacou que “a presidente Dilma Rousseff relativizou a importância da discussão sobre os direitos humanos na ilha comunista”.
Após o lançamento do programa do governo brasileiro conhecido como Mais Médicos, responsável por contratar profissionais de medicina estrangeiros (principalmente cubanos) para atuar em áreas que tradicionalmente são preteridas por médicos brasileiros, como regiões periféricas de grandes centros urbanos e pequenos municípios do interior do país, a mídia hegemônica, em vez de explicar à população o verdadeiro escopo do programa, ressaltando seus possíveis aspectos positivos e negativos, produziu um considerável número de matérias negativas sobre os governos brasileiro e cubano. De acordo com os especialistas ouvidos pela imprensa, o programa Mais Médicos, independentemente da falta de profissionais nos rincões do país e nas periferias das grandes cidades, possuía um viés estritamente eleitoreiro. O fato de o Estado brasileiro não pagar os salários diretamente aos profissionais cubanos, mas repassar o equivalente a essas remunerações ao governo de Havana foi utilizado como pretexto para articulistas midiáticos qualificarem os profissionais cubanos como “escravos de jaleco do Partido Comunista Cubano” que chegaram ao Brasil em “aviões negreiros”.
Ao longo dos anos, a representação midiática de Fidel Castro foi construída como um indivíduo déspota, corrupto, demagogo e sedento por poder. Em sua cobertura sobre a repercussão do falecimento do líder da revolução cubana, a grande imprensa brasileira privilegiou as comemorações de dissidentes cubanos residentes em Miami em detrimento das homenagens prestadas ao ex-presidente por milhares de pessoas nas ruas de Havana, que foram noticiadas, em sua maioria, através de vídeos compartilhados nas principais redes sociais. Enquanto veículos da imprensa internacional, de diferentes tendências ideológicas – entre eles New York Times, Reuters, Le Figaro, The Guardian e Die Zeit – recorrem a adjetivos como “líder cubano”, ”líder da revolução cubana” “líder revolucionário” e “pai da Revolução Cubana” para noticiar o falecimento de Fidel Castro, a Folha de S.Paulo utilizou a palavra “ditador” em manchete de sua edição virtual.
Desmidiatizar o pensamento
De maneira geral, os noticiários brasileiros mencionam somente as declarações de cubanos que se encaixem em seu viés ideológico, ou seja, indivíduos que abominam veementemente o governo castrista. Uma reportagem publicada pelo portal G1 após o falecimento de Fidel Castro, intitulada “Nem aí para Fidel: jovens dizem que mudanças esperam na ilha”, apresentou, através de entrevistas, os motivos pelos quais adolescentes cubanos são indiferentes à política desenvolvida pelo governo de Havana. Segundo as moças e rapazes ouvidos pela reportagem, a morte de Fidel Castro não deve ter impacto no cotidiano ou mesmo trazer mudanças que desejam em Cuba. Entre as expectativas desses jovens estão “coincidentemente” as mesmas críticas corriqueiramente dirigidas pela grande mídia à única nação socialista da América Latina: voto direto para presidente, maior liberdade de expressão, melhor remuneração, acesso a bens de consumo, espaço para a iniciativa privada ou mesmo mudar-se de Cuba (pois inocentemente acreditam que em outros países, sobretudo nas grandes potências ocidentais, há amplo respeito pelos direitos dos cidadãos).
As imagens seletivas divulgadas sobre a ilha caribenha seguem o mesmo viés tendencioso. Geralmente paisagens de bairros degradados com ruas sujas e habitações miseráveis, semelhantes às áreas mais pobres de grandes cidades brasileiras, o que pode gerar no público receptor a ideia de uma nação extremamente subdesenvolvida, desprovida de qualquer tipo de infraestrutura ou serviço básico urbano. Em contrapartida, questões como o embargo econômico imposto pelos Estados Unidos a Cuba, as inúmeras tentativas de assassinato de Fidel Castro arquitetadas pela CIA e os progressos mundialmente reconhecidos alcançados pelo Estado cubano – como a erradicação do analfabetismo, acesso universal à saúde ou a ausência de subnutrição infantil – não são mencionados pelos principais veículos de comunicação brasileiros.
A concentração dos meios de comunicação de massa latino-americanos em propriedade de poucos grupos não representa apenas a reprodução de ideologias colonialistas, mas, conforme a história recente tem demonstrado, também consiste em grande ameaça aos preceitos democráticos, pois, em ocasiões pontuais, influentes grupos midiáticos contribuíram ativamente para a deposição de governos com tendências políticas à esquerda. Lembrando as palavras da blogueira Cynara Menezes: “A mídia tem sido o braço pseudodemocrático dos golpes brancos que vêm ocorrendo na América do Sul ao longo da última década. Como não consegue ganhar eleições, a direita se alia aos principais jornais e emissoras de TV e apela a soluções jurídicas, quando não diretamente para a força bruta, para chegar ao poder.”
Portanto, como nosso imaginário social latino-americano tornou-se um espaço público privatizado pela mídia, articulado a partir das categorias da linguagem jornalística, um novo espaço de resistência subcontinental depende, intrinsecamente, de um esforço coletivo para “desmidiatizar o pensamento”. Para isso, torna-se necessário solapar qualquer forma de “coronelismo midiático” e promover uma completa democratização dos meios de comunicação de massa para permitir que os diferentes setores sociais da América Latina construam representações sociais próprias e tenham voz para divulgar suas demandas e reivindicações. Uma democracia verdadeira requer, sobretudo, uma mídia que não seja mera reprodutora do status quo, mas que contemple a grande pluralidade de espectros ideológicos.
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Francisco Fernandes Ladeira é mestrando em Geografia