Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como observar o silêncio? (II)

A matéria ‘Como observar o silêncio?‘, publicada na edição da semana passada do Observatório da Imprensa precisa e merece reparos. Após a publicação, continuei a investigar a questão proposta no texto, em diálogo com algumas listas de discussão. Soube que Katherine Funke, do jornal A Tarde, fez matéria sobre o assunto na mesma quarta-feira, 4 de julho, em que o Valor Econômico igualmente publicava a sua.

Conversei eletronicamente com a autora da matéria e soube que A Tarde registrara que no dia 2 de julho se encerraria o prazo para recadastramento de armas.

A Tarde foi o único jornal que anotou a data, anos atrás, e deixou a pauta pronta para ser feita em 2 de julho de 2007. Como se sabe, a segunda-feira, 2 de julho é feriado local em Salvador. A pauta ficou para o dia seguinte e a repórter soube, já em processo de apuração, que houve a medida provisória. Katherine Funke optou abrir a matéria com a ampliação do prazo para recadastramento.

Afinal, era o que dizia o § 3º do Art. 5º da Medida Provisória 379:

‘Os registros de propriedade expedidos pelos órgãos estaduais, realizados até a data da publicação desta Lei, deverão ser renovados mediante o pertinente registro federal até o dia 31 de dezembro de 2007.’

Certeira: no Brasil apenas 10,8% das armas foram recadastradas. Não houvesse a Medida Provisória, conforme apurou a repórter, 3,3 milhões de armas passariam a ser consideradas ilegais.

Como estudar o que não é publicado?

A matéria foi feita e com a angulação perfeita: na Bahia, o índice de armas cadastradas é ainda menor. Apenas 4,7% delas, menos da metade da média brasileira.

No texto anterior, considerei a matéria de Valor Econômico bem feita. Confirmo, mas é forçoso o registro de que o jornal ignorou a alteração no prazo de recadastramento. Com foco nas repercussões, deixou escapar o essencial. Apenas A Tarde observou a alteração no prazo de recadastramento. E foi o único jornal brasileiro que deu a notícia.

Mas não é só: se Valor Econômico dispôs de três repórteres em três capitais, A Tarde tinha apenas uma repórter. Que, entre outros, ouviu Antônio Rangel Bandeira, especialista em controle de armas da ONG Viva-Rio, uma das fontes de Valor.

Este novo texto decorre de um problema sobre o qual estou me debruçando atualmente. Ei-lo:

O silêncio: um problema.

Há, portanto, um problema a enfrentar. Como estudar o que a imprensa não revela? O que fazer com as ocorrências, os eventos, os problemas, as questões que não aparecem nos jornais?

E a dívida externa?

Um exemplo: no início deste século, a CNBB, entidade que reúne os bispos da Igreja Católica no Brasil, estimulou a população brasileira a votar num plebiscito sobre a dívida externa. Obteve, nos resultados divulgados, ampla maioria. Quase 99% dos votos. Não era um plebiscito oficial, regulado e regido por Tribunal Eleitoral.

No ano seguinte, num momento decisivo do processo eleitoral de sucessão presidencial, Lula divulga o que viria a ser conhecido como ‘Carta aos brasileiros’: um documento comprometendo-se a honrar contratos, pagar pontualmente aos credores externos e internos.

Pois bem: passada cerca de meia dúzia de anos, nem governo, nem oposição, nem imprensa e tampouco a academia respondem a uma questão simples. O que aconteceu com a dívida externa brasileira? Quem é capaz de responder? Quem tem as informações. Por que os brasileiros estão absolutamente desinformados sobre a atual situação da dívida brasileira?

Concluo este texto na primeira quinzena de julho de 2007. Neste momento em que redijo, o dólar está cotado a menos de R$ 1,90, fato antes ocorrido apenas em 2000, mesmo ano do plebiscito da CNBB.

O tema ‘dívida externa’ tornou-se silencioso na imprensa. Jornais e jornalistas brasileiros produzem inúmeras informações sobre problemas ‘cambiais’: valor das reservas, distorção do valor do real, entre outras. A ninguém ocorreu perguntar: ‘Como anda a dívida externa brasileira hoje?’

Pra não dizer que o assunto não é dito: http://www.estadao.com.br/ultimas/economia/noticias/2007/jul/12/108.htm

Ou: no dia 5 de julho, a Agência Estado divulgou e alguns jornais registraram que:

Dívida externa do Brasil avança para US$ 184,319 bilhões

Infografia

A dívida externa total do país atingiu em maio US$ 184,319 bilhões, segundo previsão do Banco Central. Em abril, a dívida externa era estimada em US$ 182,840 bilhões.

A dívida de médio e longo prazo ficou em US$ 145,334 bilhões no mês passado, enquanto a de curto prazo totalizou US$ 38,985 bilhões. Em abril, a dívida de médio e longo prazo era de US$ 145,401 bilhões e a de curto prazo, de US$ 37,439 bilhões.

Isto basta? Isto esclarece?

Referendo foi sobre ‘comércio’

Exemplo dois. Em 2005, os brasileiros foram às urnas fazer uma escolha peculiar. O Congresso Nacional aprovara o Estatuto do Desarmamento em dezembro de 2003, mas restara uma única questão cuja falta de solução resultou na convocação de um referendo. O referendo seria para aprovar ou reprovar o Estatuto?

Não.

O referendo não questionava o Estatuto, não argüia sobre o porte de arma, não perguntava sobre questões essenciais do problema. O referendo consultava os brasileiros apenas com relação ao detalhe secundário, referente à comercialização. O Brasil continuava a produzir armas, o Estatuto do Desarmamento estabelecia uma série de normas sobre o porte, sobre o uso, sobre diversas questões relativas ao tema. O eleitorado brasileiro foi chamado a fazer uma escolha apenas sobre se o ‘comércio’ de armas seria proibido ou não.

Tarefas de ombudsman

Em momento algum do debate do referendo as questões aqui apresentadas foram citadas ou referidas. Os ‘marqueteiros’ do lobby da indústria de armas apropriaram-se do valor ‘liberdade’ e o usaram como estratégia de persuasão. Não está em questão aqui qualquer posição sobre o tema. O texto limita-se a explicitar a total ausência de qualquer aproximação com algo que pudesse se perceber como ‘esclarecimento’.

O que faz um ombudsman?

O trabalho de um ombudsman, pela sua sistemática e rotina, apresenta um método bastante interessante para o debate metodológico de crítica de mídia. O ombudsman, ao menos nas experiências brasileiras de A Folha de S. Paulo e O Povo, lê e esquadrinha, com lupa, o jornal inteiro e anota erros, problemas, imprecisões. Lê e esquadrinha a concorrência e confronta matéria por matéria – quando ambos tratam do mesmo tema – e observa o que o jargão chama de ‘furos’ ou ‘barrigas’.

Aqui, no momento, ‘furo’ é visto exclusivamente como aquela matéria que o jornal deu à frente do concorrente – ou o concorrente deu à frente do jornal observado.

É chegado o momento de produzir aquilo que o ombudsman qualifica de ‘crítica interna’, hoje chamada de ‘crítica diária’: um texto, para circular exclusivamente na redação com as anotações, comentários, observações etc.

Lira Neto, ombudsman de O Povo, no decorrer do ano de 1998, registrou em seu livro Herança de Sísifo:

‘Desde os primeiros dias no cargo, percebi que minha vida acabara de dar uma guinada profissional e pessoal. Não demorou constatar que a rotina de um ombudsman é, antes de mais nada, beneditina. Condicionei-me a acordar, a partir dali, todos os dias, às cinco da manhã, hora em que me entregava à tarefa de ler a edição de O Povo de ponta a ponta, analisando cada matéria, cada notícia, cada reportagem, comparando-as em seguida com o que havia sido publicado nas páginas de nosso principal concorrente. (…) Só assim seria possível enviar religiosamente, dentro do horário previsto um comentário interno de razoável consistência, que deveria ser lido até o final da manhã pela redação e por toda a diretoria do jornal.’

Lira continua e mostra sua metodologia:

‘Em tais comentários, privilegiava a análise de conteúdo, pondo o foco das minhas considerações sobre a angulação, a precisão e a ética dos textos publicados naquele dia. Erros de ortografia e pequenos deslizes gramaticais eram apontados apenas de relance.’

No parágrafo seguinte:

‘A tarde era para a leitura detalhada de revistas semanais e de jornais de outros estados.Era preciso comparar minuciosamente as coberturas, traçar paralelos, estabelecer relações, detectar possíveis lacunas e equívocos nas páginas de O Povo‘.

Nossos defensores estão cumprindo suas obrigações? Por que a mudança no Estatuto do Desarmamento, estabelecida pela Medida Provisória 379, foi tão mal noticiada?

Quem responde?

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Jornalista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo