No episódio sobre o reconhecimento dos títulos nacionais conquistados por vários clubes nas décadas de 50 e 60, a imprensa esportiva brasileira está de mãos dadas com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Sabe-se que a entidade comandada por Ricardo Teixeira despreza os torneios anteriores a 1971, quando teve início o Campeonato Brasileiro. Entre os times vencedores daquelas competições estão Santos, Botafogo, Palmeiras, Bahia, Cruzeiro e Fluminense.
De acordo com a fraquíssima memória da CBF, Pelé não tem títulos nacionais. É rei sem coroa. O atleta de todos os tempos é órfão de conquistas no país que ajudou a se transformar no maior papão de títulos do mundo.
A entidade máxima do nosso futebol não está só. Tem o apoio de parte da mídia esportiva. O Globo Esporte, da TV Globo, vira e mexe traz reportagens colocando o Flamengo como pentacampeão brasileiro. Justíssimo. Ocorre que a TV Globo, ao mesmo tempo em que ‘reconhece’ o título do time carioca de 1987, ignora as conquistas do Santos de Pelé e do Botafogo, de Jairzinho, por exemplo.
Se a CBF considera o Sport o legítimo campeão nacional daquele ano, por que a Globo contradiz a versão oficial, colocando o Flamengo como penta? O comportamento da emissora carioca seria coerente se também considerasse os títulos vencidos por Santos, Botafogo, Palmeiras, Bahia, Cruzeiro e Fluminense.
O jornal Folha de S.Paulo também presta desserviço à história do futebol brasileiro. No final do ano passado, o diário paulista publicou ranking dos clubes mais vitoriosos no Brasil. E atribuiu pontuação bem inferior aos campeonatos disputados antes de 1971.
Injusto e imoral
CBF e imprensa esportiva não têm memória. Os argumentos para o não-reconhecimento dos títulos dos anos 50 e 60 são frágeis, superficiais e despropositados. Um deles é o de que os campeonatos anteriores a 71 mudaram de nome várias vezes. Se o critério for este, o que dizer do atual Brasileiro, cuja competição trocou de nome pelo menos cinco vezes? Nasceu Campeonato Nacional, virou Taça de Ouro e Taça de Prata, ressurgiu como Copa União (módulos de várias cores), voltou a ser Brasileiro, apareceu como Copa João Havelange e agora é o ‘novo’ Brasileiro de pontos corridos.
De 1971 para cá, a competição ‘oficial’ da CBF teve um regulamento para cada ano. Bagunça generalizada. Essa babel de regulamentos e desmandos durou pelo menos 32 anos. Muita coisa aconteceu nessas mais de três décadas. As viradas de mesa tornaram-se comuns. O Campeonato Brasileiro só passou a ser mais bem organizado a partir de 2003. Ainda assim, não se observa o tal ‘caráter nacional’ da competição. Somente nove dos 26 Estados, além do Distrito Federal, têm representantes no ‘novíssimo’ Campeonato Brasileiro.
Seria, então, o caso de menosprezar as conquistas entre 1971 e 2002? A julgar pelo entendimento da CBF e mídia esportiva, sim. Mas seria injusto e imoral tirar títulos conquistados dentro de campo, tal qual nos anos 50 e 60. A prova de que as disputas nesses anos eram tão nacionais é que Náutico, Fortaleza, Sport e Bahia chegaram a várias finais, desbancado os ‘grandes’ de São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul.
Torneio continental
Outra coincidência: os títulos ignorados pela CBF foram conquistados entre 1958 e 1970, justamente no momento em que o Brasil passou a dominar o futebol mundial. Depois disso, o ‘país do futebol’ só voltaria a vencer outra Copa 24 anos mais tarde.
Vale lembrar que muitos campeonatos estaduais chegaram a ser disputados por apenas quatro equipes. O Paulista, por exemplo, chegou a ter dois campeonatos paralelos, além de edições com apenas quatro clubes. Mais: desde 1902, esteve sob a responsabilidade de nove diferentes federações. Mesmo diante de tantas alterações, todos os títulos são reconhecidos.
O Wikipédia traz um texto sobre a Taça Brasil, cuja introdução revela o caráter nacional dessa competição: ‘A Taça Brasil foi uma competição de futebol de nível nacional disputada em sistema de copa entre 1959 e 1968, antecedendo a criação do Campeonato Brasileiro. Foi criado pela CBD em 1959 para indicar os representantes brasileiros para um torneio continental e que teve sua origem no Congresso da Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL), realizado no Rio de Janeiro em 1958, e que passaria a se chamar Taça Libertadores da América. Participavam da Taça Brasil equipes campeãs estaduais de todo o país…’
Será que Pelé existiu?
Para a CBF, o zagueiro Odvan, do Vasco, tem mais história que o grande Mauro Ramos, do Santos. Os laterais Giba, do Corinthians, e Maurinho, do Cruzeiro, têm títulos nacionais. Merecidíssimos, aliás. O contra-senso é descobrir que o grande capitão do tri do Brasil e do grande Santos, Carlos Alberto Torres, não traz essa conquista em sua biografia, mesmo fazendo parte de um time que venceu cinco campeonatos nacionais consecutivos.
Jairzinho, Gérson e Paulo César Caju são, na memória da CBF, nada diante de Bobô, Tupãzinho, Tonhão, Paulo Almeida, entre outros. E quem são Djalma Santos, Dudu e Ademir da Guia perto de Cris, Richarlysson, Wilson Mano e Tóbi? Pode-se comparar, por exemplo, Tostão e Piazza a Vampeta e Luizão? Para a CBF, não só pode como estes levam ampla vantagem sobre aqueles.
Louve-se a notável ferramenta Wikipédia, que mantém intacta a história do futebol brasileiro dos anos 50 e 60. Os torcedores de Botafogo, Santos, Bahia, Cruzeiro, Fluminense e Palmeiras que quiserem olhar pra trás têm de lançar mão do vasto material disponível na internet sobre o período mais vitorioso do futebol brasileiro.
Porque, se depender da mídia esportiva, a história desse esporte no Brasil começa somente em 1971. Foi quando a CBD – e depois a CBF – passaram a gerir o esporte mais apaixonante do planeta de maneira irresponsável e irregular, sob enxurrada de denúncias de corrupção, dentro e fora de campo.
Fica, por fim, pergunta aos burocratas da CBF e aos jornalistas esportivos, principalmente aos da velha guarda: Pelé existiu? Têm certeza? E Garrincha, Gérson, Ademir da Guia, Tostão, Pepe, Gilmar, Piazza, Cafuringa, Marco Antônio e tantos outros campeões das décadas de 50 e 60?
******
Jornalista, Brasília, DF