Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Conflitos de uma entrevista explosiva

Diz um velho ditado que, se soubéssemos como são feitas as salsichas, não as comeríamos. Supondo que há uma larga distância ente os métodos de trabalho do açougueiro e do jornalista, tomar conhecimento do making of de uma matéria, ao contrário da salsicha, pode ser tão estimulante ao apetite do leitor quanto a matéria em si.

Principalmente se for o caso de uma entrevista explosiva, como a que fez Soraya Aggege, de O Globo, com Sílvio Pereira, e o relato que ela produziu sobre o encontro com o petista (‘Soraya Aggege conta os bastidores da matéria com Sílvio Pereira’), publicado na edição de 10/5. Nele, Soraya mostrou o faro do bom repórter. Longe do espírito de manada dos que buscam novidades sobre a crise política apenas no olho do furacão de Brasília, ela girou a bússola em outra direção. Um personagem proscrito por seus companheiros de sigla acabou se tornando o mote vitorioso de Soraya.

O feito já a projeta como uma provável ganhadora de prêmios, a julgar pela opinião entusiasmada de Milton Coelho da Graça, no site Comunique-se: ‘Acho difícil alguém tomar de Soraya Aggege o Prêmio Esso de Jornalismo deste ano’. Alguns leitores de Milton viram na iniciativa da entrevista o bico tucano – comprovando um maniqueísmo que amiúde é alimentado pela própria mídia: ou você está contra o PT e a favor dos tucanos ou vice-versa.

Projeções e conspirações à parte, o relato dos encontros da repórter com o entrevistado, ocorridos em duas ocasiões, expõe três conflitos que, invariavelmente, permeiam a ação do jornalista, em maior ou menor magnitude. O primeiro conflito: quando Sílvio lê o que Soraya havia produzido no encontro da quarta-feira, aprova o texto, mas retrocede, assustado. Considerou seu teor escandaloso demais. Pediu então que a repórter abortasse a entrevista e aceitasse a proposta de escrever um livro sobre o assunto, mais adiante.

Colocando o profissionalismo acima de tudo, Soraya consultou uma instância superior do jornal, que se manteve irredutível: a entrevista seria publicada. Havia informação de interesse público nas afirmações do petista. E nesse caso os bons mandamentos do jornalismo não deixam dúvidas: o interesse público deve falar mais alto. Quem dera que todos os coleguinhas se mantivessem firmes assim na base. Foi nesse ponto que Sílvio Pereira subiu nas tamancas. Aparentando descontrole, começou a destruir o apartamento, assustando a repórter, que saiu em busca de ajuda, deixando para trás anotações e documentos cedidos pelo próprio Sílvio.

Limite

O segundo conflito: deve soar intrigante para o leitor o fato de a repórter, mesmo assustada, abandonar suas armas dessa forma, depois do esforço para convencer uma fonte tão arredia a abrir o bico. E espanta o fato de Soraya estar munida de apenas um bloquinho de anotações. A não ser que tivesse feito algum acordo com o entrevistado, para manter a conversa off the records.

O que terá havido? Prevaleceu o espírito humanitário da cidadã sobre o instinto do repórter, diante do faniquito do entrevistado? No que cabe ainda indagar: o cidadão existe dissociado do jornalista? São entidades diferentes? O episódio mereceu um post espirituoso da blogueira Nariz Gelado, que sintetiza bem o estupor de um leitor ante o inusitado: ‘Se me fosse dada a oportunidade de entrevistar qualquer um dos envolvidos nos atuais escândalos republicanos, eu iria munida de dois gravadores e um estoque considerável de fitas’. O tom pode ser de troça, mas a observação não é improcedente. Afinal, a conduta contumaz dos acusados no mensalão não tem sido a de negar as irregularidades, mesmo diante das evidências?

Aqui surge o terceiro conflito: até onde vai o limite da apuração jornalística? Soraya deveria ter usado um gravador oculto – sugestão, aliás, feita pela blogueira –, caso Sílvio lhe tivesse pedido um off? Mas teria feito diferença? Afinal, Sílvio Pereira rasgou, por assim dizer, a entrevista ao ‘esquecer’ tudo que dissera à repórter. São esses métodos, cada vez mais adotados, de desqualificar o jornalismo, que tornam o seu exercício cada vez mais desafiador. O clima é quase que de guerra permanente. Terá o jornalismo armas suficientes para as batalhas?

******

Jornalista, editor do Balaio de Notícias