Diz um velho ditado que, se soubéssemos como são feitas as salsichas, não as comeríamos. Supondo que há uma larga distância ente os métodos de trabalho do açougueiro e do jornalista, tomar conhecimento do making of de uma matéria, ao contrário da salsicha, pode ser tão estimulante ao apetite do leitor quanto a matéria em si.
Principalmente se for o caso de uma entrevista explosiva, como a que fez Soraya Aggege, de O Globo, com Sílvio Pereira, e o relato que ela produziu sobre o encontro com o petista (‘Soraya Aggege conta os bastidores da matéria com Sílvio Pereira’), publicado na edição de 10/5. Nele, Soraya mostrou o faro do bom repórter. Longe do espírito de manada dos que buscam novidades sobre a crise política apenas no olho do furacão de Brasília, ela girou a bússola em outra direção. Um personagem proscrito por seus companheiros de sigla acabou se tornando o mote vitorioso de Soraya.
O feito já a projeta como uma provável ganhadora de prêmios, a julgar pela opinião entusiasmada de Milton Coelho da Graça, no site Comunique-se: ‘Acho difícil alguém tomar de Soraya Aggege o Prêmio Esso de Jornalismo deste ano’. Alguns leitores de Milton viram na iniciativa da entrevista o bico tucano – comprovando um maniqueísmo que amiúde é alimentado pela própria mídia: ou você está contra o PT e a favor dos tucanos ou vice-versa.
Projeções e conspirações à parte, o relato dos encontros da repórter com o entrevistado, ocorridos em duas ocasiões, expõe três conflitos que, invariavelmente, permeiam a ação do jornalista, em maior ou menor magnitude. O primeiro conflito: quando Sílvio lê o que Soraya havia produzido no encontro da quarta-feira, aprova o texto, mas retrocede, assustado. Considerou seu teor escandaloso demais. Pediu então que a repórter abortasse a entrevista e aceitasse a proposta de escrever um livro sobre o assunto, mais adiante.
Colocando o profissionalismo acima de tudo, Soraya consultou uma instância superior do jornal, que se manteve irredutível: a entrevista seria publicada. Havia informação de interesse público nas afirmações do petista. E nesse caso os bons mandamentos do jornalismo não deixam dúvidas: o interesse público deve falar mais alto. Quem dera que todos os coleguinhas se mantivessem firmes assim na base. Foi nesse ponto que Sílvio Pereira subiu nas tamancas. Aparentando descontrole, começou a destruir o apartamento, assustando a repórter, que saiu em busca de ajuda, deixando para trás anotações e documentos cedidos pelo próprio Sílvio.
Limite
O segundo conflito: deve soar intrigante para o leitor o fato de a repórter, mesmo assustada, abandonar suas armas dessa forma, depois do esforço para convencer uma fonte tão arredia a abrir o bico. E espanta o fato de Soraya estar munida de apenas um bloquinho de anotações. A não ser que tivesse feito algum acordo com o entrevistado, para manter a conversa off the records.
O que terá havido? Prevaleceu o espírito humanitário da cidadã sobre o instinto do repórter, diante do faniquito do entrevistado? No que cabe ainda indagar: o cidadão existe dissociado do jornalista? São entidades diferentes? O episódio mereceu um post espirituoso da blogueira Nariz Gelado, que sintetiza bem o estupor de um leitor ante o inusitado: ‘Se me fosse dada a oportunidade de entrevistar qualquer um dos envolvidos nos atuais escândalos republicanos, eu iria munida de dois gravadores e um estoque considerável de fitas’. O tom pode ser de troça, mas a observação não é improcedente. Afinal, a conduta contumaz dos acusados no mensalão não tem sido a de negar as irregularidades, mesmo diante das evidências?
Aqui surge o terceiro conflito: até onde vai o limite da apuração jornalística? Soraya deveria ter usado um gravador oculto – sugestão, aliás, feita pela blogueira –, caso Sílvio lhe tivesse pedido um off? Mas teria feito diferença? Afinal, Sílvio Pereira rasgou, por assim dizer, a entrevista ao ‘esquecer’ tudo que dissera à repórter. São esses métodos, cada vez mais adotados, de desqualificar o jornalismo, que tornam o seu exercício cada vez mais desafiador. O clima é quase que de guerra permanente. Terá o jornalismo armas suficientes para as batalhas?
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias