Prestes a ser votado na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 89/2003, que pretende enquadrar crimes cometidos pela internet e cujo substitutivo tem a autoria do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), vem causando grande comoção e um número significativo de protestos entre entidades e organizações que reúnem usuários, jornalistas e acadêmicos em defesa da liberdade de expressão na rede. Apenas uma das iniciativas, o abaixo-assinado online organizado pelos professores Sérgio Amadeu, André Lemos e João Caribé pela não-aprovação do projeto, reuniu até agora mais de 93.500 assinaturas.
O PL-89, entretanto, já foi aprovado no Senado com poucas alterações e agora aguarda apenas que o plenário da Câmara o aprecie. Há uma solicitação, do deputado Júlio Semeghini (PSDB-SP) para que ele tramite em regime de urgência e, portanto, seja votado assim que o Congresso voltar do recesso parlamentar.
Resolvida de maneira apressada, a nova legislação proposta pelo senador tucano e encaminhada quase sem restrições pelo senador Aloízio Mercadante (PT-SP) caminha em direção oposta à tendência internacional. ‘Partindo diretamente para a esfera criminal, sem que tenhamos criado sequer um marco regulatório civil para a internet, o Brasil segue na contramão da maior parte dos países desenvolvidos’, afirma o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social em nota sobre o PL. O projeto, ainda segundo o Intervozes, qualifica como crimes práticas genéricas e não define com clareza termos como ‘transferência de dado’, ‘titular da rede’ ou ‘código malicioso’.
‘O que significa a palavra `dado´ neste projeto de lei? Um endereço de e-mail é considerado como tal? E um texto publicado online?’, questiona a ONG Repórteres Sem Fronteiras. ‘O que acontece se um internauta transmite um vírus inadvertidamente? Punir alguém com prisão por uma `transferência de dado´ seria dramático para a liberdade de expressão na internet.’
Cibercapatazes
Um dos dispositivos criado por Azeredo e mantido pelo relator Mercadante no PL-89 tenta induzir os provedores de internet a se tornarem ciberagentes policiais. O prestador desse serviço terá que conhecer quais crimes são passíveis de ‘acionamento penal público incondicionado’. A partir disso, deverá repassar denúncias que chegarem ao seu conhecimento, se não quiser se tornar ele mesmo um criminoso.
Nenhum provedor, evidentemente, correrá o risco. Portanto, é provável que encaminhem quaisquer denúncias que lhe chegarem, mesmo que não exista a certeza do crime. Para o professor Pedro Antônio Dourado de Rezende, do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, os provedores de internet terão que agir como ‘cibercapatazes e, a partir da suas automatizadas denúncias, o Estado poderá, legalmente, perseguir o que lhe convier’.
A Associação Brasileira de Provedores de Internet (Abranet) já manifestou sua preocupação com esta possibilidade. ‘A função do provedor não é essa. É a polícia quem investiga, não o provedor. Investigar é função do Estado’, disse o presidente do conselho diretor-executivo da Abranet, Eduardo Parajo, em entrevista à Folha Online no início de julho.
‘O artigo 22 instala o vigilantismo no provimento de acesso a internet, dificultará a implantação de redes wireless aberta, dificultará a existência de provedores nas escolas e pequenas empresas, além disso, poderá criar um novo negócio de segurança para consultorias e auditorias’, acusou o sociólogo e pesquisador da sociedade da informação Sérgio Amadeu em seu blog.
Vários crimes
A última versão do projeto também não resolve uma outra polêmica contida na redação do texto. O PL-89 altera o Código Penal para impedir o acesso não autorizado pelo ‘legítimo titular’ de redes de computadores ou dispositivos eletrônicos protegidos. Uma interpretação possível poderia transformar em criminoso o sujeito que destravasse um CD para ouvir seu conteúdo em outro dispositivo, como um MP3 player.
Cria também o crime de estelionato eletrônico, que é cometido pelo usuário que ‘difunde, por qualquer meio, código malicioso com intuito de facilitar ou permitir acesso indevido à rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado’.
Para Sérgio Amadeu, o PL-89 pretende coibir a livre troca de dados, mesmo sem fins comerciais. ‘Tal como Sarkozy, na França, criou uma lei anti-P2P (peer to peer), pois com a lei de copyright francesa não se conseguia conter a troca e compartilhamento de arquivos digitais, o grupo do senador Azeredo percebeu que pode criminalizar os internautas por violarem regras de segurança.’
Para o Intervozes, a criminalização serve à indústria ‘interessada em bloquear mídias e dispositivos’. O coletivo ressalta que o projeto permite que seja acionado criminalmente o usuário que burlar estas travas mesmo depois de terminado o prazo de proteção sobre aquele conteúdo ou equipamento.
Além disso, a nota do Intervozes chama a atenção para o fato de que o texto considera crime um ‘ato preparatório’. ‘Ou seja, não o crime em si, mas uma ação anterior necessária para cometê-lo, já que a mera difusão de código malicioso será considerada crime e não apenas a quebra do sistema’ [ver a íntegra aqui].
Bancos
A justificativa principal para a aprovação do PL-89 no Senado e a pretendida aceleração da votação na Câmara é o combate à pedofilia. Curiosamente, na mesma madrugada em que o controverso PL-89 foi aprovado, o Plenário do Senado apreciou também outro projeto de lei, este dedicado exclusivamente à questão. O PL 250/2008 é fruto de intensos e produtivos debates na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia. A CPI contou com a participação de seis promotores de Justiça da Vara da Infância de cinco estados, dois delegados da Polícia Federal, dois consultores legislativos e dois técnicos da Safernet, entidade que atua no combate a este crime na rede.
‘Pedofilia já é crime no Brasil e crianças e adolescentes têm todo um aparato legal que as protege. Em 99% dos casos, não é preciso de uma nova lei’, comentou o jornalista Pedro Dória, em sua coluna no jornal O Estado de S.Paulo.
A insistência na aprovação do projeto encontra explicação em interesses de setores específicos e poderosos, especialmente os bancos. O setor bancário pretende suprimir o boleto bancário a partir de 2009 e transferir para a rede grande parte de suas operações, o que representaria uma redução de custos brutal. É necessário, no entanto, garantir não apenas segurança na internet, ainda muito sujeita a fraudes, mas dividir com alguém – no caso, os provedores e os usuários da rede – os custos da vigilância.
Essa parece ser uma justificativa plausível para a insistência do Congresso em um projeto condenado, inclusive, por especialistas em Direito. O Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro, divulgou uma análise jurídica que aponta ‘problemas graves’ em cinco artigos do PL-89. ‘Em síntese, a imprecisão do texto e suas conseqüências imprevisíveis demandam que sejam vetados no mínimo os artigos 285-A; 285-B; 163-A, parágrafo primeiro; Art. 6º, inciso VII; Artigo 22, III. Caso os artigos persistam, condutas triviais na rede serão passíveis de punição com penas de até 4 anos de reclusão.’
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Do Observatório do Direito à Comunicação