Ele se define como sendo um ‘do contra’ e talvez não exista melhor definição para Alberto Dines. No cenário de marasmo e silêncio da mídia brasileira, Dines é um dos poucos a falar – e bastante – sobre o trabalho da imprensa, em sua avaliação, limitado e ainda repleto de aberrações. E também dos poucos dispostos a abrir espaço, no Observatório da Imprensa criado e dirigido por ele, para que outras críticas circulem.
Nesta entrevista a este outro observatório, Dines reafirma a vocação expressa de nadar na contracorrente. Assume, em tempos de empolgados discursos sobre as novas tecnologias da informação, que sua análise está focada na imprensa tradicional, nos grandes jornais impressos. O que não o impede de exercer o seu sarcasmo (eventualmente confundível com mau humor) em temas mais amplos.
Por exemplo, é direto ao chamar de ‘bando de canalhas’ o grupo de políticos e empresários que, segundo ele, articularam-se para fechar o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Senado previsto na Constituição Federal. E indignado ao comentar a concentração da propriedade no setor midiático, para ele o pior dos problemas da imprensa brasileira.
Mesmo ao falar sobre um problema que considera como não-problema, empolga-se. Para Dines, a questão da exigência do diploma universitário para o exercício do jornalismo não existe. O que existe é uma grave crise na formação que deprime a qualidade da mão-de-obra que chega às redações. Este problema – o da formação e o papel da universidade nisso – é que deveria estar no centro das atenções, em especial a iniciativa do Ministério da Educação de rever a estrutura dos cursos de jornalismo.
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Talvez sejam dois os resquícios de 2008 que persigam a imprensa brasileira em 2009: a discussão sobre o diploma de ensino superior específico para o exercício do jornalismo, com a possibilidade de que seja concluído o julgamento do mérito da questão pelo STF, e a crise econômica, com suas conseqüências sobre as empresas de comunicação. Ao combinarmos esta entrevista, você dizia que a questão do diploma já seria ‘águas passadas’. É isso mesmo?
Alberto Dines – Não existe o problema do diploma, existe o problema da qualidade da mão-de-obra nova que chega às redações. A renovação dos recursos humanos, para usar a expressão mais técnica, é extremamente preocupante, porque ela não é qualificada. Ela ajuda a jogar para baixo o nível do jornalismo. Isso é um processo, um esmagamento dos dois lados: eles [os novos jornalistas] vêm desqualificados pelo ensino superior, sobretudo o privado; e, por outro lado, aqueles que conseguem sobreviver, são esmagados pela máquina do pensamento mercadológico das grandes empresas, o jornalismo de resultados. Então, você não tem aí aquela ebulição normal que existiria se você tivesse, realmente, um ensino superior produzindo naturalmente mão-de-obra qualificada.
Então, mesmo que o STF resolva alguma coisa em relação ao diploma, o problema persiste?
A. D. – Quem pode dar um grande empurrão nisso é o Ministério da Educação, o ministro [Fernando] Haddad. Pela primeira vez eu vejo – aliás, eu não conheço o ministro – um ministro sensível à idéia de que o exercício do jornalismo tem de ser feito por pessoas com um grau de formação superior à simples graduação, uma pós-graduação, um mestrado profissionalizante. A Folha de S. Paulo publicou, e nós [Observatório da Imprensa] reproduzimos, um artigo na página 3, em novembro passado, do reitor da Universidade Federal da Bahia, excelente, de altíssimo nível, nesta linha [ver ‘O fim do mestrado…‘]. Evidente que ele não falava do jornalismo, da formação do jornalista, mas falava em geral. Nós temos que dar ao nosso formando a possibilidade de ele rapidamente se preparar para uma pós-graduação profissionalizante, não-acadêmica. Isso é vital. É assim nos Estados Unidos. Eu passei um ano acadêmico em Columbia [a universidade] há 30 anos… o jornalismo é um mestrado, mas profissionalizante. Eu acompanhei. Eu vi o primeiro dia: eles [os estudantes] chegam de diversas áreas – em geral das ciências sociais, raramente da medicina, das ciências exatas – e imediatamente, no primeiro dia, eles vão fazer matéria. E saem, dois semestres depois, jornalistas realmente profissionalizados. Tudo bem, no Brasil dois semestres podem ser insuficientes… fazemos três semestres. Mas esta graduação, no Brasil, é insuficiente. Ela é precária, é insuficiente, ela não forma, não informa, não dá base, não dá consistência cultural. Inclusive era preciso rever este currículo. A história da imprensa não é ensinada. Por isso, as empresas simplesmente decretaram que não vai se lembrar os 200 anos da imprensa. Agora, se você tivesse jovens jornalistas que conhecessem esta história, eles teriam comemorado do seu jeito.
Teriam pressionado para que isso fosse uma pauta…
A. D. – Nós, Observatório, na televisão, fizemos uma série de três programas – que estão sendo reprisados agora – e têm causado grande espanto. As pessoas não sabiam que o Brasil foi um dos últimos países a ter tipografia, que nós estamos atrasados em relação ao México ou mesmo ao Peru em mais de 200 anos. Agora, isso é o currículo. Eu acho que nós temos que dar mais ao formando de jornalismo e simplesmente a graduação não basta. Acho que teria de ser uma pós-graduação. E com isso você poderia resolver, selecionar um pouco este material humano, fornecendo para a mídia grandes profissionais, mais qualificados. O que está acontecendo é que os sindicatos e as entidades profissionais não estão preocupados, eles querem mais profissionais diplomados para se ter mais assessor de imprensa. Hoje, a Federação Nacional de Jornalistas tem mais assessor de imprensa do que jornalista.
Mas o perfil da categoria é este.
A. D. – Se você faz uma pós-graduação profissionalizante, você tem pós-graduação de assessoria, tudo bem. Eles vão estudar psicologia de massas, as coisas que interessam à assessoria, mas você vai ter uma pós-graduação de jornalista, de gente de redação, que vai fazer matéria, que vai para a rua. Esse é um problema que transcende ao STF. Tem que mudar o enfoque.
Então, na sua opinião, se fôssemos colocar em perspectiva o ano de 2009, todo jornalista, ou melhor, todo cidadão brasileiro preocupado com a qualidade do jornalismo deveria estar mais interessado nesta oportunidade que se abriu no MEC, de discutir a estrutura escolar para a formação dos jornalistas, do que na decisão do STF?
A. D. – Eu não sou um jurisdicista. Neste ponto, eu sou pouco latino-americano. Nós vivemos muito amarradinhos à lei, mas nós não respeitamos a lei. A grande verdade é esta. Esta coisa de lei, STF… o STF tem tentado preencher algumas lacunas de desmandos que há no Brasil, mas o negócio é criar uma consciência: quando a gente discute diploma, o que é que a gente está querendo? Está querendo qualificação profissional. Então vamos discutir qualificação profissional. É uma outra visão. Mas como eu sou minoria, essas coisas não colam. Porque eu não estou preocupado com este formalismo jurídico, nem estou preocupado com que a Fenaj tenha mais associados. Estou preocupado com o que está chegando de novos quadros para as redações, em geral é muito fracos. Não há uma renovação. No passado era o contrário: chegavam os chamados ‘focas’ e eles vinham com aportes muito interessantes. Por isso eles eram recebidos. Eles encontravam o seu lugar porque tinham alguma coisa a dizer.
Mudando o nosso foco: viemos de dois anos muito bons para as empresas jornalísticas, em termos de faturamento. Foram feitos alguns investimentos, redações parando de demitir e começando a contratar. Em teoria, estamos diante de um ano que tende a não ser tão bom. Que problemas a crise econômica, que é tão alardeada pela própria mídia, pode criar?
A. D. – Eu sou sempre do contra. Estou na contracorrente… Eu não acho que foram bons anos. Contabilmente, podem ter sido razoáveis. Contabilmente. Eu não sou auditor, não sou contador. O produto não melhorou tanto assim. Você continua tendo aberrações. A chamada indústria jornalística – eu detesto este nome, mas eles gostam de se chamar assim –, esta indústria está botando na rua modelos muito ruins. Está disponibilizando produtos que estão muito longe do que se podia produzir. Por outro lado, eles não estão investindo, não estão abrindo novas frentes. Está tudo muito concentrado. Você tem três grandes jornais de referência nacional e uns oito jornais regionais, de diferentes portes, com alguma qualidade. Mas esta qualidade é muito díspar. Alguns são melhores e outros são muito ruins, embora sejam donos dos respectivos mercados. Você tem aí um processo de concentração de mercado que é terrível. Agora, isso só pode ser resolvido se houver uma discussão honesta, franca, em algum organismo. Não pode ser no governo, mas num ambiente legislativo. E aqui eu quero dizer que uma das grandes bandeiras da imprensa brasileira ou da comunicação brasileira foi o que ocorreu há três anos – acho que são três – quando o Conselho de Comunicação Social foi fechado.
A que você atribui o fechamento do Conselho de Comunicação Social no Senado?
A. D. – Não foi uma decisão: foi um trambique dos políticos, do governo e das grandes empresas de mídia para acabar com esta possibilidade, esta tênue possibilidade de você ter um fórum para discutir as coisas. Hoje, não tem mais isso e não vai ter nunca mais. E está na Constituição que tem que ter. Foi um bando de canalhas – a palavra é esta – que simplesmente se juntou para acabar com uma conquista. Tudo bem, o conselho não tinha força, tinha mil defeitos, mas ele tinha uma certa representação. E ele tinha, digamos, uma certa vocação para ser um fórum – sem poder, mas um fórum dentro de uma casa legislativa como é o Senado, a câmara alta. De repente, acaba-se com isso de uma forma ignominiosa. Põe-se um presidente que foi lá com a tarefa de fechar o conselho. Este homem se chama Arnaldo Niskier. Este homem assumiu com esta tarefa. Acadêmico, amigo do [senador José] Sarney, há mais de trinta anos que não faz jornalismo… puseram ele na presidência do Conselho de Comunicação Social e ele foi lá para acabar com o conselho e este nunca mais voltou a existir. Você não tem mais um fórum para discutir isso que estamos discutindo aqui.
Um fórum público…
A. D. – Um fórum público. Mesmo que ele [o CCS] seja claudicante, mas é um fórum. Durante dois anos, a gente se reuniu uma vez por mês, no Senado, com toda a solenidade, numa sala de sessão especial, com transmissão pela TV Senado, e pela primeira vez se discutiu a concentração da imprensa. Eu tive a honra de ser o primeiro a levantar isso e dizer que isso tem de entrar na pauta permanente. Mesmo que a gente não tenha como resolver, nós temos que manter este assunto em discussão.
Neste caso, valeria a lógica de que, se para cada veículo faz bem haver um ombudsman, uma ouvidoria, faria bem existir um espaço público para se discutir esta indústria da comunicação no seu conjunto. É isso?
A. D. – O ideal seria que este órgão tivesse o mínimo de poder decisório, como por exemplo a FCC americana, a Federal Communications Commission. Embora ela tenha perdido parte da sua força, ela ainda tem força para multar televisões, impedir concentrações.
E com alguma jurisdição para também tratar de conteúdo…
A. D. – De aberrações em relação ao conteúdo, sim. No caso, do conteúdo de televisão e rádio, porque são mídias que pertencem à sociedade, [são] públicas. Aí você tem que se comportar dentro dos limites do espetáculo – ao contrário do impresso, onde a liberdade é absoluta. Agora, você tem que ter no mínimo este fórum, porque senão a coisa vai ficar eu e você falando pelo skype…
Então, na sua opinião, tendo um bom ano contábil ou um mau ano contábil, a qualidade do produto jornalismo não sofre oscilações?
A. D. – Não sofre e sobretudo você não se prepara para avançar. Preparar-se para avançar pressupões discussões, debates, ouvir o outro, ouvir os marginais, os que estão na contracorrente, ouvir os mais experientes. Nós temos que criar no Brasil esta noção de que os mais velhos – e aí, eu não estou defendendo a mim, mas os mais velhos – têm algo a dizer. E sobretudo terão muito a dizer porque o mundo caminha para ser o mundo da terceira idade. A projeção da força das pessoas mais idosas é fantástica. Então, tem que ouvir as experiências de pessoas lúcidas, que têm alguma coisa a dizer, porque o mundo vai ser deles. É inevitável. A não ser que você decrete que o sujeito, ao chegar aos 70 anos, tem de ser fuzilado. Aí, eu teria que ser também… Em suma, o que tem que fazer é isso: abrir o espaço da discussão.
E quem ‘fecha’ o espaço de discussão?
A. D. – Os jornais não se discutem e eles embargam os espaços de discussão. Há um tabu combinado pelo grande pool de imprensa de que não se discute as grandes questões relativas à grande imprensa. No máximo, os ombudsmen fazem alguma crítica… e, pronto! Vivemos no mundo do silêncio. Justamente a esfera da vida que deveria ser a mais comunicada, a mais visível, a mais transparente.
Alguma iniciativa ou algum tema pode se colocar como uma pontinha de esperança neste mar de silêncio, neste mar de mesmice que você aponta na imprensa brasileira?
A. D. – Eu acho que esta coisa que o Haddad, de longe, está sinalizando é boa, mas não vejo muita coisa que me anime. Nem na iniciativa privada, algo do tipo ‘tem aí uma empresa que quer criar novos veículos’. Não tem. Não tem nada que seja estimulante. O Rio de Janeiro, que sempre foi o centro do jornalismo brasileiro, até os anos 1960 e mesmos nos 70, de repente está esvaziando, nivelando por baixo. O Globo, um excelente jornal, tem que lutar contra O Dia, que toca duas oitavas abaixo, que é um bom jornal, um muito bom jornal, mas é um excelente jornal popular. Ele não vive de cobertura internacional… aí, O Globo também vai tocar duas oitavas abaixo. O Jornal do Brasil também é uma picaretagem inominável. Então, o Rio de Janeiro, a segunda cidade do país, com uma vocação nacional, não existe jornalisticamente. Mesmo porque O Globo – porque hoje é um jornal local, voltou a ser um jornal local – não encontra muitos leitores em São Paulo, por exemplo.
Há um esvaziamento de referências?
A. D. – De pólos, também. Você polarizou tudo em São Paulo. Mas a Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo não conseguem nem ser jornais nacionais, nem ser jornais locais. Eles levam surras em matéria de cobertura local, porque tentam ser nacionais, mas não dá.
E mesmo a televisão tem se deslocado para este eixo paulistano…
A. D. – A televisão ainda consegue ser um pouco mais multifocada, mas eu me preocupo mais com os jornais. Porque os jornais diários são a referência. Eu, quando faço análises, é pensando nos jornais. Eles são a referência: ali está escrito, ali está a tradição, os paradigmas são estabelecidos, principalmente na chamada grande imprensa impressa. Então, é isso que me preocupa mais. O resto vem em seguida. E eu vejo que você não tem coisas novas pintando por aí. Ao contrário: Veja piorou como revista – e não vou discutir o conteúdo, as posições políticas. A Veja, há dez anos, sob o ponto de vista editorial, tinha mais informação, melhor texto, melhor tudo do que tem hoje. Há 10 anos! Não estou falando há 30 ou 40 anos. E assim você tem as outras publicações também. Nós estamos caminhando para um processo de desqualificação.
Nem as possibilidades colocadas pela internet, pelas novas tecnologias podem ajudar a imprensa brasileira a sair deste marasmo?
A. D. – A nossa internet, os veículos que se organizam na internet, nossos portais são muito fracos. Eu me sirvo deles para notícias mais quentes, para a coisa mais imediata. Mas eles não vão me dar as referências, não vão me dar o acompanhamento. Inclusive, eles seguem os jornais, não os antecipam. O UOL, por exemplo, ele nunca fura a Folha. Ele tem a informação e não fura a Folha. Eu sei porque, às vezes, tenho que fazer um comentário de rádio à meia-noite e eu vejo que o UOL está segurando a informação para sair amanhã na Folha. A internet no Brasil ainda não é ameaça. Ela tem os mesmos defeitos da área escrita, mas não tem as qualidades. É mais mal escrita.
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Do Observatório do Direito à Comunicação