Outubro de 2005. Aproximava-se o dia da votação do referendo sobre o desarmamento e a Veja põe na capa ‘Sete razões para votar NÃO’. A primeira página, naturalmente polêmica, revelou de forma límpida a opinião da revista e gerou centenas de comentários reativos à iniciativa. Pôs-se à prova uma questão: um veículo de comunicação tão influente poderia abdicar da imparcialidade e tomar partido tão claramente assim?
Veja é criticada há muito tempo por seu posicionamento contundente e suas matérias editorializadas. Já é lugar-comum afirmar que a revista parece ser escrita pela mesma pessoa do início ao fim, tamanha a coerência das idéias expostas em todas as páginas. O problema não está exatamente na veemência das opiniões, mas no figurino de neutra e defensora dos interesses da sociedade que a publicação sempre vestiu.
Contra as críticas, Veja dizia que eram normais porque buscar a verdade era incômodo para muita gente. Entretanto, o sarcasmo acima do tom tornou a revista antipática e deselegante. Algumas matérias pareciam destinadas a um veículo humorístico. Era uma revista diferente daquela que aprendi a gostar, nos anos 80, repleta de reportagens importantes, perfis atraentes e entrevistas antológicas.
A ‘burguesia pseudo-esquerdista’
Nos últimos meses, Veja mudou. O texto recuperou a objetividade e a abordagem passou a ser menos arrogante. Ao mesmo tempo, a revista resolveu assumir, com mais clareza, sua posição, abandonando a roupagem da imparcialidade que não lhe caía bem. Aparentemente cansada de posar, em vão, de paladina imparcial da justiça, agora a publicação da Abril entrou na guerra e elegeu, fácil, seu inimigo principal: a esquerda brasileira, maior catapultadora de críticas à Veja, sobretudo pela perene avaliação negativa do governo petista e pela incansável produção de capas denunciando o mensalão.
Exemplos recentes da reação de Veja não faltam. A capa de 3 de outubro deste ano foi sintomática: ‘Che – A farsa do herói – Verdades inconvenientes sobre o mito do guerrilheiro altruísta, quarenta anos depois de sua morte’. Escancarar em sua primeira página a desqualificação de um ícone mundial da esquerda não é o que pode ser chamado de ataque tímido ou discreto.
Uma semana depois, a revista entrevistou o apresentador Luciano Huck, que sofreu duras críticas por ter publicado, na Folha de S.Paulo, um artigo reclamando da violência urbana depois de ter sido assaltado em São Paulo. O texto introdutório das famosas páginas amarelas define: ‘O tom geral das manifestações [contra o apresentador] era o de que, rico e famoso, Huck tinha mais é que se resignar em ser vítima de bandidos. Ora, isso é uma distorção mental típica da burguesia pseudo-esquerdista brasileira’ (p.11).
Texto simples e estiloso
Na edição de 17 de outubro, na reportagem sobre o sucesso do filme Tropa de Elite, Veja clarifica sua visão social contemporânea: ‘Mas o Brasil, infelizmente, é um país de idéias fora do lugar por causa da afecção ideológica esquerdista que inverte papéis, transformando criminosos em mocinhos e mocinhos e criminosos’ (p. 82). Até os colunistas de Veja, em teoria ilhas de opinião ‘independentes’, em geral corroboram a linha editorial da revista. Os articulistas mais eventuais parecem ter escrito seus pontos de vista no mesmo forno que produz as reportagens da publicação.
O leitor pode concordar ou não com o posicionamento anti-esquerdista de Veja. A tendência é de, no fim das contas, sobrarem apenas os leitores alinhados com a revista. O risco da postura ideológica assumida é estimular pouco o debate e transformar o semanário em uma publicação de nicho.
A sorte é que Veja conservou, em todos os seus anos de vida, um atributo importante e diferencial: a qualidade de seus textos. Mesmo quando constrói um encadeamento de idéias incoerente ao leitor de ideologia oposta, a redação das matérias é inteligente, coesa e extremamente sedutora.
Pode-se criticar a Veja por qualquer coisa, menos por ter um texto incompreensível ou pífio. Não: ele é, ao mesmo tempo, simples, estiloso, muito bem escrito. E, assim, Veja conquista leitores afinados com sua política editorial e, ao mesmo tempo, consegue ser atraente mesmo para quem discorda de todas as frases que a publicação semanalmente traz.
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Jornalista