Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Contradições do jornalismo segmentado

Há momentos em que a classificação temática que reina nos grandes jornais brasileiros parece gritantemente arcaica. E como os jornais dão o tom e definem os paradigmas jornalísticos dos demais meios de comunicação, a mesma decrepitude fica visível na mídia eletrônica, com a agravante de que, sendo mais recente e moderna, deveria obrigatoriamente diferenciar-se através da inovação.


Para facilitar a vida dos diferentes leitores do mesmo exemplar, estabeleceu-se uma segmentação que com o passar do tempo tornou-se visivelmente obsoleta, na contramão das convergências que hoje dominam nossas vidas.


Por que razão uma matéria ‘cultural’ não pode ficar no primeiro caderno quando se tratar de um evento, livro ou espetáculo relacionado com política e, evidentemente, atender às exigências da atualidade?


Nos jornais europeus, as páginas de opinião são flexíveis e permeáveis. Cabe tudo. Afortunadamente persiste o espírito abrangente do velho feuilleton, principalmente no jornalismo alemão. Nossos diários são sectários, discriminatórios e, em última análise, arrogantes – as páginas de opinião e política são dedicadas majoritariamente a quem mexe com política. Mas política interessa a todos, ao menos nos regimes democráticos. Assim, os cadernos de cultura e/ou entretenimento são voltados para as leitoras, para os jovens ou, simplesmente, para os ‘artistas’.


Tarde demais


Por que razão um extraordinário filme como A Onda (Die Welle) não entra na pauta política? No momento em que o calendário nos aproxima dos 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial não seria de grande atualidade discutir as condições e circunstâncias que podem produzir neo-fascismos? Este, por acaso, é um problema exclusivamente europeu e não latino-americano?


O filme do alemão Dennis Gansel adaptado do romance de Todd Strasser (também roteirista) é tremendamente oportuno, por isso arrasador. Aquela irrupção de irracionalidade totalitária aconteceu efetivamente na Califórnia em 1967, mas os alemães – ou melhor, o idealismo alemão felizmente resgatado – soube universalizá-lo e localizou a história num moderníssimo ginásio, numa cidade de província da Alemanha, onde a maioria dos alunos é da classe média (apenas um é de origem turca e perfeitamente aculturado).


A onda fascista foi criada artificialmente pelo professor encarregado de explicar aos alunos o que é uma autocracia. Ele preferia ficar com o tema do anarquismo, mas foi desbancado. Resigna-se e inspirado nas modernas técnicas didáticas de vivenciar o que é ensinado resolve criar um processo autocrático dentro da sala de aula. Em apenas uma semana, aquela garotada bonita, bem nutrida, vitaminada, sexualmente desinibida, sem qualquer preconceito histórico, pressão superior, doutrinação ou necessidade vital, entrega-se voluntariamente ao desvario fascista.


Quando o professor percebe que aquilo deixou de ser uma experiência laboratorial é tarde demais: mesmo ele estava envolvido pelo processo massificador e brutalizante.


Seleção redutora


O fascismo surgiu na Itália, criação de um jornalista socialista chamado Benito Mussolini. Culto, informado, sabia das coisas, só não sabia que vinte anos depois seria fuzilado pelos compatriotas, parceiro de Adolf Hitler num banho de sangue inédito na história da Europa. O seu fascismo espalhou-se pelo mundo – tomou conta da Espanha, Portugal, fincou um pé na França, infiltrou-se na Áustria, na Europa Central, nos Bálcãs, chegou à Romênia. Atravessou o Atlântico, alimentou o nosso Estado Novo, aqui produziu instituições, estruturas e mentalidades que ainda não foram desmontadas (sequer identificadas), penetrou profundamente na Argentina, inspirou Juan Domingo Perón e espalhou-se por toda América Latina oferecendo aos caudilhos – militares ou não – as justificativas teóricas para agarrarem-se ao poder.


O fascismo não é um perigo extemporâneo, é rigorosamente contemporâneo. Está vivo e presente nas páginas dos jornais com outras denominações e disfarces.


A Onda ficou relegada apenas às páginas de cinema em primeiro lugar por conta de um preconceito que diminui o sentido da política e a torna subsidiária, menor, sem conexões com as grandes linhas do pensamento. O colunista/analista – quando tem tempo para ir ao cinema – sabe que se comentar um novo filme, livro ou espetáculo teatral poderá receber um carão do chefe agarrado às distorções geradas pelo imediatismo do ‘fato do dia’.


Em segundo lugar porque nossos jornais foram organizados aleatoriamente, sem qualquer reflexão e, posteriormente, por designers e ‘consultores’ sem qualquer amor ao que fazem, sob inspiração dos diretores de marketing que ainda não entenderam qual a função da imprensa e qual será a saída para a sobrevivência do jornalismo impresso.


Os semanários de informação, porque são unos, corridos, poderiam escapar dessa seleção redutora desde que voltassem a ostentar as páginas de cultura de outros tempos. Tablóides como El País, não-cadernizados (ou pouco cadernizados), não estabelecem fronteiras, não têm guetos, nem bunkers. Estão aptos a enfrentar as ondas em qualquer uma de suas páginas. Eventualmente em todas.


 


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