Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Controle de conteúdo no século das bios

Quando começou a epidemia de Aids eu trabalhava no Ministério da Saúde. Vendo que os jornais veiculavam qualquer coisa, desde ‘peste gay’ até mosquitos transmissores, propus ao então ministro Carlos Santana que convidasse para uma reunião os editores de ciência dos jornais e, para dar as informações cabíveis, os infectologistas que estavam começando a tomar pé na situação. Ao telefonar para os jornalões, descobri que nenhum deles tinha editor de ciência. Mas mandaram gente, a reunião foi muito boa, ficaram bem sem graça com o dossiê de imprensa que organizamos mostrando as barbaridades, ouviram professores e, a partir daí, a coisa melhorou muito.

O estrago que vinham fazendo, informando mal as pessoas, dificilmente poderia ser consertado pelo Ministério através dos seus recursos habituais. Basta comparar o impacto que têm matérias alarmistas com pronunciamentos de ministros ou cartilhas educativas. Além da disparidade entre o poder econômico da mídia e as verbas para divulgação científica que costuma ter o Estado, as representações sociais de agente disseminador, da maneira como estão construídas, fazem com que um programa como o Fantástico seja recebido como portador de mais ‘veracidade’ e tenha mais credibilidade que a figura de um ministro falando de epidemias.

A mediação do poder público, naquele episódio, ao juntar jornalistas e professores de medicina para acertar ponteiros visando a uma divulgação científica isenta, foi uma possibilidade de controle de conteúdo, que não podia ser sentida como censura ou imposição de pautas. Infelizmente, este tipo de mediação não tem sido prática corrente. E, passada a euforia com a redemocratização assoprada pelos ventos da ‘Nova República’, seguida dos furacões do neoliberalismo, a credibilidade de controle governamental vem se mostrando espantosamente abalada.

O poder de captar furos

Não teria a ingenuidade de sonhar que aquela iniciativa possa ter influenciado a formação das editorias de ciência atuais. Outras e fortes foram as razões, ao que parece. E é dessas razões que decorre a urgência de se estruturarem canais de controle social independentes que sejam capazes de exigir do Estado o direito à informação segura, que possibilite um debate esclarecido sobre os rumos das pesquisas e da aplicação do conhecimento.

Uma das principais tecnologias que vem assumindo papel de ponta de acumulação do capitalismo, e que tem um impacto de caráter inédito sobre a vida como a conhecemos, é escassamente conhecida da maioria e o que se sabe dela vem de informações tendenciosas, que alardeiam vantagens em termos de espetáculo e sistematicamente ocultam seus riscos e danos: a biotecnologia.

Depois da obtenção do patentamento dos seres vivos, o campo da biologia transformou-se numa enorme corrida de Fórmula 1. A mídia (sobretudo os jornais, por seu público de classes média e alta), sob a forma de aparente divulgação, vem assumindo papel estratégico nos sistemas de aquecimento das cotações de ações de empresas ‘bios’. Quem acompanha com olho mais atento as notícias sobre, por exemplo, novos e promissores tratamentos, se surpreende com o incrível poder das agências de notícias de captar, no mais precoce momento inicial da pesquisa, entusiasmantes furos.

Manipulações de informação

Tenho certeza de nunca ter lido matéria semelhante em relação a alguma linha de pesquisa das ciências humanas. Ideias filosóficas ou categorias de análise da sociologia, por mais consolidadas que possam estar, não são cotadas na bolsas nem constituem promessas de lucro em mercados de futuro. E não seria por falta de importância. O acúmulo de conhecimento feito, em décadas de pesquisas e reflexões, por exemplo, sobre o significado do racismo e das construções de gênero na formação do capitalismo industrial, não tem os holofotes do Projeto Genoma, das células-tronco, dos ‘bebês de proveta’, da clonagem. No entanto, são mais estruturantes da nossa forma de estar no mundo que as nossas combinações cromossômicas. Aliás, em um mundo regido por outras relações, provavelmente nem sequer teríamos ouvido falar de cromossomos.

Mais difícil ainda que filtrar os vieses mercadológicos da divulgação científica é mostrar os silêncios, o que se oculta sistematicamente e, como silenciar significa poder, constrói não realidades, não existências. No campo enviesado das ‘bios’ é estridente o silêncio da comunidade científica, nem toda ela, como esperamos, envolvida na corrida por patentes, de olho nos índices da Nasdaq.

Assim, a articulação de olhares críticos às manipulações de informação, neste caso em particular, assume caráter dramático, pois, como sabemos, a biologia não faz parte do currículo de jornalistas, de juízes nem tampouco consta que parlamentares contratem, a exemplo de grandes bancos, assessoria de biólogos – escaldados que foram por investimentos desastrosos.

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Médica, Salvador, BA