No dia 5 de outubro de 1988, há 20 anos, era promulgada a mais atual Constituição da República Federativa do Brasil, com 250 artigos. Foi a primeira das sete constituições brasileiras a ter um capítulo exclusivamente dedicado à comunicação social. Mas o pioneirismo daquela Assembléia Nacional Constituinte com relação à normatização da comunicação não se deu de forma tranqüila. Pelo contrário, este foi uma dos capítulos mais problemáticos de todo o processo de redação da primeira Constituição pós-ditadura militar.
Durante o período de um ano e oito meses, de fevereiro de 1987 a outubro de 1988, 559 parlamentares divididos em 24 grupos elaboraram propostas para serem sistematizadas e votadas, dando corpo assim à nova Constituição. O subcomitê de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática, que ficou responsável por organizar uma proposta de capítulo para a comunicação social, teve neste ponto a sua maior dificuldade e não conseguiu entregar à comissão de sistematização, no tempo previsto, um acordo entre as forças políticas que disputavam diferentes visões a serem positivadas na Carta Magna. O contexto em que foi gestado o novo texto constitucional transpirava anseios democráticos, mas, de forma contraditória, no Parlamento via-se uma base nitidamente conservadora e aliada à elite tradicionalmente detentora do poder político e econômico.
Os dois principais atores políticos da disputa sobre o que veio a ser o capítulo ‘Da Comunicação Social’ eram a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), representante dos interesses dos radiodifusores e que tinha ampla representação parlamentar, e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que por sua vez tinha um número bem menor de parlamentares partidários ou simpatizantes de suas propostas. Aliada da Fenaj, porém não totalmente alinhada com as propostas da entidade, estava a Frente por Políticas Democráticas de Comunicação, que contou com parlamentares que ficaram marcados pela sua atuação na defesa da comunicação democrática, como Cristina Tavares, Artur da Távola e Olívio Dutra.
Dentre as principais propostas da Fenaj, estavam a positivação da comunicação como um bem público, a constituição de um sistema público de comunicação, de um Conselho Nacional de Comunicação – que fosse deliberativo e responsável pela regulamentação e fiscalização – e a existência de regras claras para a limitação de monopólios e oligopólios. A Abert, por sua vez, tinha como objetivo garantir o mínimo de legislação para o setor. Atuar na ausência de um marco regulatório sempre foi o objetivo dos empresários do setor de comunicação e, para tanto, a associação contou com a contribuição incessante dos seus parlamentares.
Além da expressiva força da Abert na Assembléia Nacional Constituinte, outra esfera do poder público também estava claramente a favor dos concessionários: o Executivo. A composição do primeiro escalão da chamada Nova República tornava impossíveis alterações na regulamentação do setor de radiodifusão. No cargo de presidente, tomou posse um representante das oligarquias maranhenses e radiodifusor, José Sarney, que entregou à sua versão baiana, Antônio Carlos Magalhães, o Ministério das Comunicações. Na Secretaria Geral do ministério, Sarney e ACM mantiveram Rômulo Villar Furtado, no cargo então há 11 anos, tendo passado incólume pelos três últimos governos militares. A esposa do secretário-geral, Rita Furtado, uma grande empresária das comunicações, foi ainda eleita deputada federal e tornou-se agente direta dos interesses do ministério dentro da Constituinte.
Tensões, perdas e ganhos
A tensão no subcomitê Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática era grande. A primeira relatora do capítulo da comunicação, a deputada Cristina Tavares, de posição considerada progressista e a favor da democratização dos meios de comunicação, não aceitou descaracterizar a proposta do Conselho Nacional de Comunicação para torná-lo um órgão apenas consultivo. Também não cedeu em outras importantes propostas e foi substituída por Artur da Távola. Vários substitutivos foram feitos e a perspectiva de um acordo não chegava. Távola, com uma posição um pouco mais conciliatória, conseguiu, junto com uma comissão de professores da UnB e especialistas em políticas de comunicação, aos 45 minutos do segundo tempo, fechar um acordo e mandar direto para a votação em plenário a proposta do capítulo V do título VIII da Ordem Social da Constituição Federal.
De cara, o Plenário derrubou a proposta de se ter um Conselho Nacional de Comunicação com representação de diferentes setores da sociedade para regulamentar a comunicação caiu. Em seu lugar, criou-se o Conselho de Comunicação Social com caráter exclusivamente consultivo e limitado ao Senado, cuja regulamentação tornou-se, anos mais tarde, um drama à parte. Outra grande vitória dos radiodifusores foi o condicionamento da cassação da concessão ou permissão para rádios e TVs ao voto nominal de no mínimo dois quintos do Congresso Nacional. A previsão inviabiliza, na prática, a cassação de qualquer outorga.
Por outro lado, a introdução da limitação a oligopólios e monopólios no artigo 220; dos princípios de finalidade educativa, cultural e informativa dos meios de comunicação além da regionalização e produção independente no art. 221 e a complementaridade dos sistemas estatal, público e privado de comunicação contida no artigo 223 foram vistos como uma vitória do setor progressista. Contudo, ao longo destes 20 anos, nenhum desses artigos considerados ‘ganhos’ políticos da frente que defendia políticas democráticas para a comunicação foi satisfatoriamente regulamentado.
O saldo das negociações beneficiou claramente os empresários da radiodifusão, que saíram do processo constituinte como grandes vitoriosos da disputa ali travada. Apesar de a nova Constituição reforçar o caráter público da comunicação e, mais especificamente, da radiodifusão, o próprio texto e as disputas que seguiram à sua promulgação reforçaram o modelo de mercado e ampliaram as salvaguardas para a exploração privada e comercial do serviço.
Apesar de flagrantemente desatualizada, o Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 continua ser a lei mais completa que regulamenta a radiodifusão. Em 1997, o setor das telecomunicações foi retirado de dentro do CBT, separado do setor da radiodifusão e, com a privatização, ganhou uma lei novinha, a Lei Geral das Telecomunicações. Por sua vez, a radiodifusão ainda é regulamentada por uma lei publicada quando a TV ainda era uma tecnologia em preto e branco.
Desregulamentado
Boa parte dos demais capítulos do Título VIII – Da Ordem Social foram regulamentados. Podemos usar como exemplo a saúde, que em 1990 foi regulamentada pela lei que criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e outras leis complementares que tratam do orçamento do setor; a Educação, que foi regulamentada em 1996 com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e tem ainda regulamentado o Conselho Nacional de Educação e o Plano Nacional de Educação e a Assistência Social, que desde 2004 conta com o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e também a Lei Orçamentária da Assistência Social (Loas).
Passados 20 anos da promulgação da Constituição, fica patente que não é do interesse dos radiodifusores nem da grande maioria dos parlamentares e tampouco dos governos que se sucederam ter um setor das comunicações plenamente regulamentado. Assim como os governos militares se utilizaram deste instrumento de forma a controlar os meios estatais, os governos civis e os parlamentares beneficiam-se das suas relações com os empresários da comunicação, rechaçando toda forma de dar transparência ao funcionamento do setor. Tem sido uma constante, ao longo dos anos, que projetos e políticas envolvendo mecanismos de democratização, participação ou controle público das mídias sejam barrados pelo Executivo e o Legislativo, quase sempre com seus defensores sendo rotulados de censores.
Além da comunicação, alguns outros capítulos da Constituição, como o que estabelece os direitos dos povos indígenas, que também se encontra no Título VIII, aguardam por uma nova regulamentação que se faça minimamente atualizada. Contudo, não se pode querer apenas atualizar as leis sem um direcionamento político que trate os temas da Ordem Social como bens públicos e, fundamentalmente, como direitos humanos. É importante ressaltar que de nada vai adiantar regulamentar estes setores sem reconhecer neles a sua real dimensão de direito humano e sem salvaguardar neles as responsabilidades que o Estado, como poder público, tem na sua garantia e promoção.
******
Do Observatório do Direito à Comunicação