Se ainda circulasse, o Correio da Manhã completaria 110 anos em 15 de junho. Surgiu no ano inaugural do século 20, num momento de grandes transformações tecnológicas, políticas e sociais, que aqui chegavam com atraso. Depois de uma trajetória marcante na imprensa brasileira, circulou melancolicamente, pela última vez, em julho de 1974, após insidiosa perseguição da ditadura militar. Seu aparecimento representou um divisor de águas na imprensa, “um marco de transição dos periódicos brasileiros”, na avaliação de Nelson Werneck Sodré. A grande novidade foi seu caráter declaradamente de oposição ao poder dominante, destacando-se pelo combate sem tréguas à corrupção, às arbitrariedades e ao desrespeito às leis constitucionais.
Diferentemente dos principais jornais da época, subsidiados pelas verbas secretas do governo, dos quais eram cativos, o Correio da Manhã se apresentou como um jornal independente. Seu proprietário, o gaúcho Edmundo Bittencourt, assim definiu a linha no artigo-plataforma: “O Correio da Manhãnão tem nem terá jamais ligação alguma com partidos políticos. É uma folha livre que vai se consagrar com todo ardor e independência à causa da Justiça, da lavoura e do comércio – isto é, a defesa dos direitos do povo, do seu bem estar e das suas liberdades.” Jornal com tal proposta seria um “jornal de opinião, e nesse sentido uma folha política”.
Edmundo abre as páginas a colaboradores de todos os matizes políticos –escritores, romancistas, juristas, professores – “com a responsabilidade de seus nomes” – dos monarquistas de “fé inquebrantável”, até o republicano “mais apaixonado”, entre outros. Desde o inicio, desfilaram por suas páginas os monarquistas Carlos de Laet, Medeiros e Albuquerque, Afonso Celso e Joaquim Nabuco, este um ardorosodefensor do fim da escravatura sem abdicar de suas convicções monarquistas, que se revezavam com os republicanos históricos Luiz Velho e o médico baiano Manoel Vitorino. Em poucas semanas, o jornal já era um sucesso. Caiu no gosto do público pelo inusitado de sua combatividade, acostumado que estava a só ver louvaminhas nos outros jornais.
A campanha da vacinação antivariólica
Sem travas na língua, dono de uma coragem quase suicida, o gaúcho Edmundo Bittencourt expôs com sua pena afiada a podridão do regime dominado pelas oligarquias, as arbitrariedades do poder, as injustiças, cutucando malfeitos e maracutaias dos poderosos que tomaram de assalto o país. Não poupou presidentes e contra alguns, como no caso de Campos Salles, Rodrigues Alves, Nilo Peçanha e Epitácio Pessoa – para citar alguns dos mais notórios –, assacou os mais ferinos e virulentos petardos. Edmundo não tinha medidas para descompor seus adversários. Naquele jornalismo licencioso e desregrado, desenvolvido numa atmosfera de liberdade sem limites, era atacado e agredido com a mesma aspereza de sua linguagem, seja por desafetos, inimigos ou “vítimas”. Ficaram célebres seus virulentos embates verbais com os próprios colegas de jornal, como José do Patrocínio, da Cidade do Rio de Janeiro; Cândido Mendes, do Jornal do Brasil; Alcindo Guanabara, de A Notícia; e o português João Lage, de O Paiz, qualificado por Luiz Edmundo como o protótipo do jornalismo mercenário. E seu alvo preferido, José Carlos Rodrigues, do Jornal do Commercio, a quem se referia sempre como “gatuno”, “ladrão” e “falsário”.
Desgastante foi sua briga com Carlos de Laet, seu colaborador de primeira hora, que deixou o jornal após sério desentendimento com Edmundo Bittencourt. Memorável foi o duelo à pistola que teve com Pinheiro Machado, o “mandarim” da República, iminência parda dos ocupantes do Catete, que por quase duas décadas dominou o cenário político do país.
A participação política do Correio da Manhã, no mais alto sentido que o termo possa ter, foi tão incisiva e envolvente que em alguns casos desempenhou papel de verdadeiro protagonista. Foi assim na campanha da vacinação antivariólica obrigatória em 1904, quando praticamente sublevou a população do Rio de Janeiro com seus candentes editoriais condenando a truculência dos agentes de saúde. A revolta popular que transformaria a capital da República num campo de batalha foi o pretexto que grupos descontentes com o governo Rodrigues Alves utilizaram para sublevar a Escola Militar da Praia Vermelha com o objetivo de depor o presidente. Dominada a rebelião em pouco mais de 24 horas e feita a ligação dos dois eventos, o governo viu no Correio da Manhã o principal instrumento da “mazorca”. Decretado o estado de sítio, o jornal foi impedido de circular no dia 15 de novembro de 1904, com a cobertura completa dos fatos. Num gesto dramático, o jornal, de motu próprio, deixou de circular por um mês.
Dois decisivos editoriais contra Jango
Percorrendo suas páginas, verifica-se como o Correio da Manhã desempenhou papel fundamental nos processos de transformação política do país, principalmente na República Velha, quando se empenhou decididamente na campanha civilista, apoiando o senador Rui Barbosa contra a candidatura militar de Hermes da Fonseca. Esteve ao lado dos insurgentes nos movimentos tenentistas regeneradores de 1922 e 1924, contra Arthur Bernardes, a quem fez cerrada oposição; combateu o Estado Novo e a ditadura de Vargas, provando nesse período os dissabores da censura, das interdições do jornal e das prisões de seus diretores. Cometeu equívocos, como no caso das cartas falsas atribuídas a Arthur Bernardes. Era tal a força de sua opinião que o estopim da queda da ditadura Vargas foi a publicação de uma entrevista com José Américo, feita por Carlos Lacerda, na qual, rompendo a censura, o antigo ministro do ditador criticava o ex-chefe e propunha a realização imediata de eleições.
Em 1950, retornando o ex-ditador ao poder em eleições livres, o Correio da Manhã posicionou-se pela legalidade e ficou ao seu lado diante dos movimentos que se esboçavam para impedir sua posse. Em 1954, porém, adotou feroz posição, alinhando-se com a oposição ao seu governo na insidiosa campanha de desmoralização que Carlos Lacerda lhe moveu, denunciando o “mar de lama” dos porões do Catete e culminando na crise que levou Vargas ao suicídio. Diante da tragédia, porém, o jornal manteve-se em respeitosa postura, lamentando o lado trágico da figura do presidente.
Com a mudança da capital para Brasília, contra a qual se bateu, o Correio da Manhã, que era um jornal da capital, próximo que estava do poder central, começa a perder campo. Seus candentes editoriais soavam agora longe do poder, quando a força de sua opinião era capaz de derrubar ministros e abalar governos. O jornal segue em sua linha combativa. Na renúncia de Jânio Quadros, defendeu a posse constitucional do vice João Goulart, para mais adiante mover-lhe persistente campanha contra sua permanência no poder, preocupado que estava com a agitação sindical incontrolável e culminando com dois decisivos editoriais para detonar sua queda: “Basta” e “Fora”.
Resistências vão se esgotando
Em 1963 sobrevém a morte de Paulo Bittencourt, sucessor de Edmundo. Seu testamento deixa para a filha única parte das ações da S.A. Correio da Manhã, mas a propriedade do jornal fica em mãos da herdeira principal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, viúva de segundas núpcias de Paulo Bittencourt.
A saída de João Goulart, preconizada por vias constitucionais pelo Correio, deu-se mediante um golpe militar. Em poucos dias, o novo regime mostra sua verdadeira face. Era o golpe militar, a nuvem negra que sufocaria o país por duas décadas. Ao contrário do que o jornal propunha e esperava, o que está à sua frente agora é um regime de opressão. Pouco a pouco, vão se evaporando as garantias constitucionais, instaura-se a repressão militar, contra a qual o jornal logo se insurge, transformando-se numa verdadeira frente de resistência ao golpe. Desafia a censura denunciando as torturas praticadas nos quartéis. Está praticamente só na defesa dos direitos humanos massacrados e é o mais veemente na denúncia. É, por isso, o mais visado pela ditadura.
Emerge nesse momento a figura de Niomar Moniz Sodré Bittencourt. De personalidade forte, voluntariosa e insubmissa, sem arredar pé da posição assumida, sob seu comando o jornal continua em sua luta quixotesca. A resposta é uma feroz perseguição da ditadura. Por enfrentar de peito aberto o regime, Niomar foi processada e presa várias vezes, sendo o seu o único caso em que a ditadura ousou atingir um dirigente de jornal. A ditadura montou um implacável cerco econômico ao jornal, os anunciantes se calaram. Mas a cada ato de violência, o jornal respondia de forma cada vez mais ousada e corajosa. Lentamente, porém, suas resistências vão se esgotando.
Símbolo da liberdade e da democracia
O golpe final viria em 1968, com o AI-5, a face verdadeira e mais escura da ditadura, do qual decorreu, entre outras arbitrariedades, a prisão da proprietária e de diretores do jornal. Duramente atingido pela censura e sucessivas interdições, atravessou uma dura jornada, ao fim da qual estava com suas forças inteiramente exauridas. Arrendado em 1969 a um grupo de empreiteiros governistas, viu sua inflexível linha oposicionista ser quebrada. A adesão do grupo à ditadura, no entanto, não rendeu o que esperava em termos de benesses do governo. Desfigurado em sua linha editorial, perdia leitores. Terminado o arrendamento, mais endividado do que quando mudou de mãos, Niomar recusou-se a receber o jornal de volta. Estava inteiramente dilapidado, irreconhecível, aquele patrimônio da imprensa brasileira.
Com seu gesto heroico, a figura de Niomar Moniz Sodré Bittencourt caminhou conscientemente para o cadafalso. Sacrificou o jornal pelos princípios éticos e morais que nortearam sua conduta desde o primeiro número. Não fez, como fizeram outros jornais, um recuo estratégico ou submisso e, num gesto de auto-imolação, resistiu até o fim à brutalidade da ditadura, empunhando a bandeira da liberdade e da democracia. Com seu gesto, ganhou dimensão política, como observou Elio Gaspari, porém à custa do sacrifício de uma instituição que, como símbolo da liberdade e da democracia, ficará para sempre inscrita nos anais da imprensa brasileira.
O Correio da Manhã não sobreviveu para saborear a vitória que ajudou a construir nem pôde presenciar a retomada da democracia em 1985, quando os princípios democráticos que defendia foram restaurados.