Já se disse, neste Observatório, que a imprensa brasileira tem dificuldade ou resiste a tratar de sistemas. Foge especialmente da discussão sobre o sistema econômico. Talvez essa incapacidade para o olhar de longo prazo tenha também alguma relação com a pouca longevidade que demonstram publicações mensais ou bimestrais dedicadas àquilo que intelectuais e jornalistas convencionam chamar de os grandes temas. Enquanto em outros países vicejam publicações que tratam das grandes estruturas organizacionais da sociedade, oferecendo aos seus leitores o mergulho constante nas questões estratégicas para a formação do ethos coletivo, aqui chafurdamos todos no ramerrame do cotidiano, no qual fica muito mais fácil para editores impor parâmetros estreitos para toda e qualquer questão que a realidade nos imponha.
Pode-se mesmo especular que a dificuldade que tem a imprensa brasileira para mergulhar nos temas relacionados à sustentabilidade nasce na mesma origem: se não consegue ou não quer discutir em sua essência o sistema econômico que conduziu o planeta à beira do colapso ambiental e ao círculo vicioso das sucessivas crises sociais, a imprensa não desenvolve as qualificações necessárias para colocar sobre a mesa o papel das empresas. Da mesma forma, não consegue discutir o papel do Estado além da velha e superada dicotomia esquerda-direita, liberalismo-conservadorismo.
O caso policial que tem em seu vértice o banqueiro Daniel Dantas oferece uma excelente oportunidade para colocar em debate o sistema econômico, o papel da empresa e dos empresários, as funções do Estado na superação dos problemas que dificultam o desenvolvimento sustentável do país, a questão da educação profunda – aquela que, a par da qualificação dos cidadãos, atua na configuração do patrimônio ético da sociedade. Para começar, os jornalistas – e os intelectuais de variadas especialidades agregados à imprensa – poderiam estar questionando se, de fato, o cidadão Daniel Valente Dantas e seu suposto parceiro Naji Robert Nahas podem ser chamados de empresários.
Qual a explicação?
Há mais de vinte anos esses dois indivíduos acumulam fortunas e poder de influência atuando na intercessão do Estado com a iniciativa privada, território onde a lassidão moral produz melhores resultados do que qualquer qualificação de gestão. Enquanto verdadeiros empreendedores enfrentam a concorrência local, regional e global com seus próprios recursos, apreendendo as oportunidades e minimizando os riscos que são da natureza do capitalismo, esses dois paradigmas do ‘capitalismo’ nacional não têm feito outra coisa ao longo de décadas do que criar oportunidades para si mesmos e seus cúmplices nos desvãos da corrupção, onde o Estado se deteriora. Quanto mais crescem seus negócios, mais apodrece o Estado.
É certo que a imprensa e outras entidades que representam a chamada sociedade civil organizada têm no Brasil uma dificuldade histórica para a convivência entre os divergentes, nos raros momentos em que este país conseguiu deslizar sobre a pista da democracia. Quase como uma maldição, parece ser da natureza das nossas melhores forças sociais e políticas se engalfinharem em disputas mesquinhas pelo poder, sempre que o Estado se desvencilha das garras dos tiranos de plantão para se oferecer à sociedade. Nessas disputas que quase beiram a irracionalidade, não raro os mais ferrenhos defensores da democracia levam a democracia aos limites da ingovernabilidade.
No período que vivemos, a colcha de retalhos bem intencionada da Constituição de 1988 reflete claramente esse fenômeno: a legislação que ela deu à luz acaba por produzir uma das mais graves crises internas do Judiciário. E não apenas a imprensa, como os agentes públicos em geral, não conseguem definir os protagonistas centrais desse episódio. Daniel Dantas e Naji Nahas são chamados de empresário e investidor. São tidos como legítimos participantes do jogo capitalista, quando na verdade, se for considerada apenas uma fração de suas histórias pessoais, eles deveriam ser tratados como patologias do sistema. A menos, é claro, que convenhamos que o sistema, em si, é patológico.
Considerando que a imprensa e os protagonistas a quem ela dá voz sejam de fato adeptos do liberalismo econômico, que rejeitam sinceramente as intromissões do Estado nos negócios privados, torna-se quase incompreensível a constatação de que aventureiros que não respeitam as mais comezinhas regras de concorrência negocial sejam tratados como legítimos empreendedores. Se, a rigor, o noticiário de há muito nos induz a constatar que esses dois paradigmas do nosso ‘capitalismo’ só sabem empreender à margem da lei e nos desvãos obscuros onde a corrupção é norma, como considerá-los legítimos representantes da iniciativa privada?
Aliás, como aceitar que há dez anos Daniel Dantas tenha sido empurrado para o processo de privatizações em detrimento de outros capitalistas nacionais? Como explicar que ele tenha sido considerado parceiro mais confiável do que Antônio Ermírio de Moraes, por exemplo?
Especulação exagerada
A imprensa nunca mergulhou nessas questões, nem os sábios de plantão que brilham nas páginas de opinião e enriquecem os noticiários do rádio e da TV com seus comentários parecem preocupados com a vulnerabilidade do nosso sistema econômico e político à ação de aventureiros.
E essa vulnerabilidade se revela agora, claramente, como um problema de segurança nacional. Não apenas pelos sinais claros – a julgar, evidentemente, pelo que nos traz a imprensa desde o dia 9 deste julho, quando se revelou a Operação Satiagraha – de que a associação entre Dantas e Nahas parece ter envenenado instituições fundamentais da República, mas pelo potencial que tem a ação predatória de tais protagonistas em setores estratégicos da nossa economia.
Desde a recente redemocratização do país, nossos melhores pensadores têm demonstrado dificuldade para lidar com questões como a censura e com o conceito de segurança nacional – tido como tema de militares. Mas não se exige especial qualificação intelectual para se colocar sobre a mesa algumas hipóteses: o perfil de Daniel Dantas seria adequado a que seja ele controlador de portos? Uma parceria entre Dantas e Naji Nahas na exploração de projetos agropecuários junto a reservas da Amazônia não carregaria um risco excessivo para a urgência de políticas sustentáveis na região? A biografia de Dantas avaliza sua permanência no setor financeiro? Não seriam todas essas questões relacionadas à segurança nacional?
Pode ser que tudo isso não passe de especulação de observadores exagerados. Mas a imprensa não pode continuar omitindo de seu público o debate sobre temas tão fundamentais.
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Jornalista